segunda-feira, 14 de julho de 2014

# Capítulo 12

Lá estávamos nós, atrás das portas do salão onde ocorreria a anunciação, observando papai e vovó desenrolarem assuntos de Estado frente as câmeras, enquanto jornalistas posudos e intricados ajustavam as suas canetas caras e os seus blocos de papel. No entanto, qualquer um poderia saber, pela forma como eles meneavam a cabeça, que tudo aquilo que papai falava era apenas uma enrolação do que estava por vir. De quem estava por vir.
            Lorenzo estava comigo, assim como Olga. Acho que as pernas de Olga estavam levemente cambaleando. O que não é um bom sinal, já que eu não me lembro de ter visto Olga nervosa. Laura estava sentada num dos sofás pomposos e inúteis da sala, folheando uma revista de celebridades de Lísia. E eu pude ver duas ou três vezes Lorenzo olhando para ela. Não que eu me importasse.
            Mesmo que a minha cabeça estivesse produzindo cenas de como eu iria cair antes de entrar no salão ou mais tarde antes de ir ao pódio da varanda onde toda a população de Lísia me esperava, metade do meu coração estava perdido e mergulhado no que Lorenzo havia me dito “Não estou acostumado com o fato de muito provavelmente estar apaixonado por você”.
Nem eu, Lorenzo. Nem eu.
Laura aproximou-se de mim, chamando a minha atenção com um papo que provavelmente iria me deixar mais nervosa.
“Parece que a rede de televisão brasileira também foi comunicada. Vai ser realmente abstrusa sua vida após a anunciação. A fama é uma coisa complicada” – ela disse sorrindo e depois voltando a atenção para a revista.
Que tipo de pessoa usa a palavra "abstrusa"? Se Dora estivesse aqui, ela provavelmente teria feito algum coisa a respeito. Mas Dora não está aqui. 
Eu pude ver a cara feia que Lorenzo fez para ela. Então ele trocou o meu braço e eu pude ler em seus lábios um “tudo vai ficar bem”. Até que Olga chamou a minha atenção para o que Eduard estava prestes a falar.
- Nesse momento, eu gostaria de pedir a atenção de todos para lhes fazer um comunicado. A população de Lísia e toda a imprensa mundial sabe que a minha querida esposa Helena – nesse momento vovó segurou a sua mão – faleceu num acidente automobilístico. Como noticiado na época, foi dito que a minha filha Anna estava morta...
Silêncio na plateia até que uma jornalista de óculos de grau enorme, levantou a mão e se dispôs a falar.
- Com a sua licença, Vossa Majestade, o senhor disse “estava”?
- Sim. Eu disse “estava”.
 - Então, quer dizer que? – a jornalista gaguejou.
- Que Anastásia nunca morreu.

O barulho do salão tomou uma proporção enorme. Com flashes, mãos sendo levantadas e pedidos de esclarecimento. Mas só precisou que vovó Pérola levantasse uma das mãos, como se pedisse silencio. E o silêncio se fez. Então, as mãos foram sendo levantadas devagar e as dúvidas foram sanadas.
“Eles não vão contar a história real, Anna. Isso atrairia uma visão errônea para o reino” – Olga cochichou nos meus ouvidos. Eu assenti com o coração nas mãos.
Um jornalista carrancudo e baixinho, levantou uma das mãos e dispôs-se a falar.
- Então, Vossa Majestade, como o senhor descobriu que a princesa Anastásia está viva?
- Eu sempre soube – mais murmurinho – Anna foi criada pela tia no Brasil, tomando aulas de como governar um país, de como se portar com uma princesa – que mentirada – enquanto Lísia fechava acordos que viriam a calhar quando Anna realmente aparecesse. Ela completou 18 anos, e nós vimos que seria a hora de trazê-la de volta.
Eu pude ver que a imprensa Brasileira que ocupava o meio da sala ficou exasperada. Começaram a levantar as mãos, uns sobre os outros. Seria cômico, se não fosse trágico.
            - Então a princesa Anastásia foi criada no Brasil? Mais precisamente onde? Então temos uma princesa de origem Brasileira – ela soltou um riso breve.
            O rei sorriu também.
            - Sim. Nós temos uma princesa de origem Brasileira. Como vocês sabem, a mãe de Anna é uma Brasileira nata. Anna morava em Natal. E ela adorava isso.
Uma outra jornalista, que pude perceber logo depois ser da CNN, perguntou outra vez.
- E quando vamos conhecer a Princesa?
- Não vai demorar muito – vovó falou sorrindo.
E qualquer um poderia ver que ela estava brilhando por dentro.
- Então, é com imenso prazer, que eu vos apresento, Anastásia Lazzari Dubiela Bradston Bertoli, princesa de Lísia. – vovó continuou.
Como assim eu tenho todos esses sobrenomes? – eu sussurrei para Lorenzo e ele só conseguiu sorrir.
Então Olga me disse para ir, e foi exatamente isso que eu fiz.
Os flashes me cegaram, o meu estômago começou a embrulhar e eu só consegui pensar em “não vomite, não vomite, não vomite, não vomite”. Papai veio me buscar e assim que ele pegou em minhas mãos, todos aplaudiram. Eu nunca havia visto tantos jornalistas, câmeras e gente reunida por uma causa. Por minha causa.
Então eu me lembrei do discurso.
Eduard me abraçou e disse no meu ouvido “está pronta para discursar, querida?” e eu fiquei sem reação. Ele me guiou até o meu lugar, uma cadeira branca e acolchoada, que se vista de longe lembraria uma nuvem. E quando eu me sentei e finalmente ergui o queixo, todos ficaram boquiabertos. E eu sabia que eles estavam pensando em “ela é igualzinha à mãe”. 
Papai, vovó, os jornalistas. Todos esperavam que eu falasse algo, mas eu não consegui falar absolutamente nada. Até papai ter percebido que eu havia travado e pulado para o plano B.
- E claro, não podemos esquecer-nos de chamar, o futuro rei de Lísia: Lorenzo Voltolini Becker Engerhoff Terceiro, príncipe de Placius.
Lorenzo atravessou o salão com um olhar gracioso e tenaz para todas as pessoas que ainda conservavam interrogações sobre a parte do “futuro rei de Lísia”. É claro, que grande parte de todos aqueles jornalistas conheciam a tradição de casamentos entre os dois reinos. É função deles conhecer. Mas ninguém pode culpa-los de pensar a respeito, qualquer pessoa com mais de dois neurônios, pensaria.
Ele ocupou a cadeira acolchoada que ficava do meu lado, e num impulso eu, simplesmente, segurei a sua mão. O que – minutos depois – me deixou sem graça, só que já era tarde demais. Esse singelo ato fez com que mais sete mil flashes jorrassem sobre os nossos rostos. Sobre as nossas mãos. Lorenzo pigarreou, chamando a atenção, dos jornalistas e disse:
- Como já fui apresentado pela Vossa Majestade Eduard, rei de Lísia, sou Lorenzo e se deletarmos a probabilidade de Anna me mandar pastar – todos riram nessa parte – nos casaremos. Não é mesmo, Anna?
AI MEU DEUS! UMA PERGUNTA. Eu preciso dar uma resposta. Mas qual resposta?
E eu só consegui consentir e sorrir.
Mas todos ali sabiam que eu precisava falar alguma coisa, me apresentar, fazer uma piada, mandar um olá. Eu precisava fazer, então eu fiz.
- Acredito que a maioria de vocês – eu comecei olhando para baixo e culpando-me, reprimindo-me com um “Droga, ana! Olhe para frente!”, até que eu levantei o olhar e comecei a imaginá-los como amigos íntimos. Vi o rosto de Hanna substituir um jornalista barbudo e sério com um tique nos olhos. Vi o sorriso de aprovação de Dora na jornalista curiosa que interrogou o meu pai. Vi os cabelos de Marina apontar numa das jornalistas brasileiras que segurava uma caderneta bonitinha verde e amarela. E por fim, vi os olhos confortantes da tia Janine num dos jornalistas da primeira fileira. Elas estavam em algum lugar assistindo tudo aquilo, e eu precisava fazer isso, se não por mim, ao menos por elas. Eu mantive a minha cabeça erguida, com olhos orgulhosos -... estão aqui para presenciar apariação de uma nova princesa, de uma nova Bradston, que irá governar a nossa Lísia. Espero fazer tudo aquilo que me for cabível e continuar sendo quem eu sempre fui. Eu não sou uma princesa. Eu sou a filha de Eduard e de Helena, a neta de Pérola, a sobrinha de Janine, a noiva de Lorenzo. Eu a soma das partes do que uma princesa pode ser.
Lorenzo apertou a minha mão. Quase gritei um “ufa!”, mas depois achei que provavelmente falei uma besteira enorme, até que vovó puxou palmas, até que todos me aplaudiram como se eu realmente fosse alguém que merecesse isso. Mas ainda não tinha acabado. Os jornalistas pediam licença para perguntas, dando início ao filme de terror “Ana está enrascada - parte II”.
- Princesa Ana, pelo visto as tradições cerimonias de Lísia serão cumpridas. Se me permitir perguntar, como Vossa Alteza e Príncipe Lorenzo se conheceram?
Aposto que as perguntas sobre Lorenzo seriam as mais frequentes. Claro que não iriam me perguntar sobre a minha cor preferida ou o meu gosto musical. Isso não rende matéria.
- Posso ser sincera? – tentando parece descontraída – Nos conhecemos quando eu tinha 07 anos. E voltamos a nos ver muito recentemente – eu não poderia dizer “há um mês atrás”. Eu não poderia dizer a verdade.
- Ok! – disse uma das jornalistas de Lísia que estavam logo à frente – Eu estou totalmente encantada e aposto que as pessoas de casa também! É inacreditável o quanto você parece com a Rainha Helena.
Isso não é uma pergunta. O que fazer com uma afirmação?          
- Seria estranho se eu falar que ouço isso o tempo inteiro? – todos sorriram.
O dia foi tomada por mais e mais perguntas. Algumas direcionadas à Lorenzo, outras à mim, vovó e papai. Algumas da imprensa brasileira, afirmando que é um tanto irreal a minha história. Mais trágica que irreal, eu diria. Mas a última pergunta, bom, a última pergunta não foi para mim.
- Príncipe Lorenzo – agora a jornalista curiosa que mais tarde apresentou-se como Claire – como foi se apaixonar por Ana?
Eu quis morrer, Lorenzo ficou pálido. Todo o salão parou. No final das contas, essa era a única revelação que a maioria dos jornalistas tinham interesse. Achei que escaparíamos dela. Estava errada mais uma vez.
Lorenzo me encarou, na esperança de que alguma ajuda saísse dos meus lábios, mas nada saiu. Nós permanecemos nos olhando por um bom tempo. O que ele iria responder me interessava. Sei que eu não deveria estar tão interessada, mas eu estava. Lorenzo gostava de mim? Então ele se virou para as câmeras. Afinal, aquilo estava sendo transmitido em rede mundial. Ele deveria mentir se precisasse. Você sabe, uma mentirinha para encobrir uma verdade dolorosa às vezes não faz mal.
- Real. Foi a coisa mais assustadoramente real que já me aconteceu. E vejam vocês mesmos, como eu não iria me apaixonar por ela?
Eu o encarei. Não sei ao certo, mas quando os meus olhos navegaram na correnteza cintilante dos olhos de Lorenzo, eu vi flutuar e erguer velas um barco pequenino e branco que continha a palavra sorria entalhada na sua proa. E eu sorri.



quinta-feira, 3 de julho de 2014

# Capítulo 11

A semana correu e o grande dia chegou. Digamos que eu esteja com a corda no pescoço. Não consegui escrever uma única linha e a única coisa que me deixa feliz é olhar o meu vestido sobre a cama. Quando vovó ou papai perguntam-me sobre o discurso, digo que estou indo bem. Indo bem mal. Em algumas horas estarei tendo a minha imagem transmitida em cadeia nacional e internacional. Da varanda posso ver as vans de diversas emissoras de televisão instalando-se frente ao castelo. Olga disse que a cidade está exasperada. Afinal, ninguém sabe o motivo do convite do rei, ninguém sabe o que ele irá anunciar. Quer dizer, quase ninguém.
Acordei cedo, na verdade, não dormi. Estou frente a porta na espera de Lola e Lívia. Quando elas entram, as puxo rapidamente.
- Preciso da ajuda de vocês!
- É só pedir, princesa Ana – Lola parece aflita, Lívia está sem cor.
- Não é nada sério. Só preciso de uma informação... vocês saberiam me levar até a sala onde os vídeos caseiros estão?
Elas sorriram. Acho que foi um sim.
Não precisamos caminhar muito. A sala ficava bem próxima dos quartos. Havia alguns sofás felpudos espalhados e uma grande tela para projeção. Pedi que me deixassem sozinha. Elas saíram logo depois.
Os vídeos estavam ordenados sobre uma estante de madeira. Eram organizados por ano. Procurei o ano do meu nascimento. E lá estavam nove fitas empilhadas. Peguei uma delas e coloquei no aparelho de vídeo. Eram daqueles convencionais, que existiam na casa da tia Janine, na minha casa.
Demorou alguns minutos até que uma mulher muito parecida comigo apareceu sobre a tela, primeiro o seu sorriso, depois a voz dela chamando o meu nome “Ana”. E depois, bem pequena, com uma coroa de flores na cabeça: eu. Aquele bebê que eu nunca vi. Nós estávamos no jardim. E eu acho que era primavera. Havia uma longa toalha azul estendida na grama e maças espalhadas sobre a toalha, algo que parecia suco de laranja. Logo depois apareceu o meu pai e então eles entraram numa conversa inaudível, eu estava ali quietinha, os olhando. A Ana do vídeo e a Ana de carne e osso.
Eu não pude segurar o choro. Era ela. A minha mãe. Ninguém iria conseguir segurar. O choro iniciou-se de forma comprimida, com os meus braços envolvendo os meus joelhos, como se eles fossem uma espécie de âncora, e me ajudassem a não afogar caso o barco afundasse. Depois vieram os soluços, que comprimiam o meu diafragma de uma forma absolutamente voraz sempre que apareciam. E só então as lágrimas escorrendo feito cachoeira, que se misturavam com os sorrisos da mamãe quando escutei saindo do vídeo um “eu te amo, Ana”.
A porta se abriu e eu não me importei, eu sabia que Lola e Lívia provavelmente não iriam sair da porta. Elas ouviram os meus berros e apareceram. Elas sempre aparecem. Eu continuei chorando sem nenhuma vergonha, elas também choram. Princesas podem chorar. E alguém me abraçou, alguém com braços musculosos e barba por fazer. Alguém com um toque que me acalmou, alguém com o perfume de Lorenzo.
Lorenzo sempre tem que aparecer.
Quando eu finalmente o encarei, ele conseguiu enxugar algumas lágrimas que ainda saíam dos meus olhos. E nós ficamos ali no escuro, olhando um pro outro. Sem falar nada, com o coração batendo forte.
Os seus dedos então vagaram pelas minhas bochechas, subiram do meu nariz para minha testa, desceram pelos meus cabelos até a minha nuca. O soluço ainda permanecia, só que mais brando, mais baixo.
Eu puxei ele para mais perto, pelo colarinho da camisa, e coloquei a minha cabeça sobre o seu ombro enquanto ele beijava o meu pescoço e logo depois a minha testa. Então ele deitou logo ali no sofá, ainda olhando para mim, acariciando a minha mão. Deitei em seguida ao seu lado, agora com a cabeça sobre o seu peito que subia e descia devagar, enquanto ele fazia cafuné no meu cabelo.
Ele não disse nada, nem eu. Fiquei com medo daquele momento ser apagado de alguma forma, porque a gente não registrou nada com uma palavra. E eu precisava registrar aquilo com uma palavra. Não com qualquer palavra. Eu precisava registrar aquilo com um “obrigada”. E foi exatamente o que eu fiz.


Uma avalanche de pessoas com maletas e penteados esquisitos passaram a entrar no meu quarto. E esse número só crescia. Fui apresentada por Olga à um cara alto de cabelos vermelhos ardentes e olhos azuis, ele chamava-se Adamastor e sorria o tempo todo. Adamastor insistiu para que eu transformasse o meu cabelo, com um corte “Joãozinho” que segundo ele era a nova moda de Paris. Eu só consegui rir da cara dele (por dentro). Ele pareceu ser gente boa, apesar de sua essencial excêntrica e nada subestimável. Logo depois algumas manicures tomaram as minhas mãos, os meus pés e lá estavam me questionando sobre que cor eu gostaria de usar. Eu me via como uma boneca de pano que era passada de mão em mão com o objetivo final de parecer apresentável ao público.
No final, Adamastor e eu, concordamos que um coque baixo e embutido por tranças ficaria legal, e que um olho de gato e uma maquiagem leve combinariam. Escolhi um rosa goiaba para unhas e eles pediram, só para lembrar daquela época em que a Ana foi princesa: uma coroa.
Adamastor me lançou um olhar cintilante, quase todos me lançaram esse olhar. Uma espécie de olhar que vagava da minha pessoa para a cora de diamantes que brilhava e berrava o meu nome como uma multidão enfurecida.
- Agora a coroa, princesa! – disse Adamastor enquanto caminhava até a cama e a coloca teatralmente em suas mãos.
Existe um pedaço do filme em “Alice no País das Maravilhas” em que Alice caí no buraco do coelho, as coisas começam a desfocar e o tempo a se perder de vista. Alice deixa de ser Alice. E foi exatamente o que eu senti quando Adamastor colocou a coroa de diamantes na minha cabeça. Eu caí num buraco. Ana havia deixado de ser Ana. Ora! Eu gostava de ser Ana. Como combater algo, quando você é o “algo” a se combater? Não é lógico. Não para mim. Pigarrei e retirei a coroa da minha cabeça, entregando-a para Adamastor enquanto todos olhavam de forma atônita e assustada na minha direção.
- Ana, você precisa ficar com a coroa – ele disse sem recolhê-la da minha mão.
Só que eu insisti. Eu era boa nisso. Aprendi ainda pequena e nunca mais esqueci.
Então ele teve que pegá-la das minhas mãos.
            - Eu vou usar uma coroa, Adamastor.
Ele saltitou e um sorriso brotou outra vez dos seus lábios, enquanto direcionava a coroa novamente na minha direção. Mas eu não correspondi, balancei a cabeça negativamente e permaneci ali parada de frente ao espelho olhando a minha imagem.
- Mas não qualquer coroa, uma coroa de flores.
 Agora ele olhava para uma mulher baixinha que parecia ter mais de 30 anos. E deu uma piscadela, ordenando em seguida que ela providenciasse a coroa. E sem mais, todos saíram e eu fiquei ali sozinha.
Mais uma vez.
Mais tarde, quando eu já estava a postos e de vestido, esperando pelas minhas flores, ou por qualquer ser humano que me levasse para respirar um ar puro, Adamastor passou o seu rosto por entre a porta após leves batidas. Como se pedisse licença, entrou no quarto carregando a minha coroa. Ela parecia ser revestida com pequenos galhos que me lembraram um ninho de passarinho, e flores pequeninas e brancas, quase como botões, flores que cintilavam absurdamente. As flores mais lindas que eu já havia visto. Flores que até eu – como meu mortal – gostaria de ter ganho.
- Ainda bem que não são flores rosa cor chá – eu disse sorrindo e o abraçando – Obrigada, Adamastor. De verdade.
Ele sorriu em seguida e colocou as flores na minha cabeça.
- Você me surpreendeu hoje, Ana.
- Pelas flores?
- Não.
- Então pelo quê?
- Pelo coração.
Adamastor deu duas batidas no meu ombro, me desejou boa sorte e seguiu para porta, mas antes de sair, ele virou-se novamente para mim e disse em alto e bom tom: “Não é que você parece mesmo com ela!”.


Provavelmente papai e Adamastor cruzaram-se na saída, assim que Adamastor saiu Eduard entrou no meu quarto, vestindo um smoking e uma faixa azul com algumas medalhas, ele segurava outra faixa azul e depois de um beijo sereno na minha bochecha, colocou-a em mim. Então tirou uma caixinha verde esmeralda de um de seus bolsos e abriu ali na minha frente. Havia um colocar fininho, com pequenas estrelas que furtavam cor.
- Sua mãe costumava usar quando havia uma festa pelo palácio. E sempre havia uma festa pelo palácio.
Tudo bem, eu não podia chorar, os maquiadores fizeram milagre com os meus olhos que estavam inchados e vermelhos. Eu não podia estragar tudo outra vez.
- Acho que ela pode me emprestar hoje – eu disse sorrindo.
- Acho que pode – papai me abraçou.
- Pronta, Ana?
- Nasci pronta – eu disse enquanto pegava na sua mão, e engolia a minha mentira. Em qual mentira nós estamos mesmo?


Enquanto caminhava com o papai, encontramos a vovó Pérola assim que estávamos entrando no salão. Ela parou e nos encarou por um tempo, com o queixo tremendo. É como ver um fantasma. Eu entendia.
- Como está linda, Ana! – ela veio no meu caminho e me abraçou – Uma verdadeira princesa. Você está usando o colar. Como sua mãe – e o queixo tremeu mais uma vez. – E o discurso, minha princesa?
Eu só consegui abraça-la de volta. Seja forte, Ana. Seja forte.
            - Óh. Está muito bom. Não vou ler agora para não estragar a surpresa, mas Meu Deus como está bom!
Acho que estou gritando um pouco. Meu Deus, eu não sei fingir. Cadê essas aulas de teatro prático nas escolas, hein?
            - Fico muito feliz em saber disso – ele acariciou a minha mão – Vou resolver alguns assuntos com a imprensa. Volto em breve – e saiu com a vovó em companhia.
Eu havia esquecido do maldito discurso. Para que um discurso? Eu não posso dizer “Bom, meu nome é Ana. Muito prazer. Até a próxima”. Menos é mais.
            Lorenzo veio na minha cabeça. Aquele idiota está me devendo o discurso. Ele vai ter que me ajudar. Ah, vai!
Não era só os meus maquiadores, ou Adamastor, ou papai, ou vovó que corriam por todo o palácio como se daquilo dependesse as suas vidas, mas exatamente todo mundo estava correndo. Alguns com sorrisos no rosto, outros segurando flores nas mãos, outros com pratos, com toalhas, com vestidos, com vasos, com talheres, com almofadas, com vidraria. Se eu pudesse sentar num dos bancos e analisar a situação, provavelmente estaria sorrindo. É muito bom observar aquilo que você não faz parte. Tudo parece uma cena de um filme e te dá vontade de puxar a pipoca e diminuir a luz do ambiente. Só que eu não podia fazer nada daquilo, não quando ainda estava com a corda no pescoço". E só para me lembrar, eu fazia parte da cena e nunca seria eu a pessoa a estar comendo o saco de pipocas. Ao menos, não hoje.
No meio daquela confusão, tentei identificar os cabelos de Lorenzo, ou porte, ou o terno, ou os olhos, qualquer coisa, mas eu só conseguia ver mais gente que ia e vinha de algum lugar, para não sei onde. Pessoas que às vezes não olhavam na minha cara, porque quase ninguém sabia que eu sou um mártir da realiza. E eu gostava disso, digo, eu gostava de ser invisível. Sempre gostei. Acontece que quando você é invisível por muito tempo, ou sei lá, passa a sua vida inteira correndo por aí com o seu tênis adidas como mais um mero mortal, digo mais, quando você se camufla nas paredes da escola porque é só mais uma pessoa desinteressante no meio de dezenas de pessoas desinteressantes, você simplesmente, se acostuma a isso.
Tudo bem. Não há tempo para reflexões. Lorenzo deve estar no seu quarto, sendo preparado para ser apresentado como o meu noivo. AI MEU DEUS. O MEU NOIVO! Respira, Ana. Foca no discurso. Corri até as escadarias novamente, fazendo um esforço sobre-humano para não suar, não parecer aflita e permanecer com os fios de cabelo no lugar. Como é difícil ser uma princesa. Se eu fosse só Ana, estaria de shorts e uma camiseta largada, fazendo brigadeiro na cozinha. Mas agora eu não sou só Ana. Sou Anastásia. A princesa perdida.
Até agora a minha roupa continuava intacta e os meus cabelos no lugar. A única coisa que não parecia estar no lugar – quando eu vi o meu reflexo no espelho, ao subir a escada pisando em ovos – era eu. Eu não sou mais eu. Se é que você me entende. Eu fico triste por isso. Enquanto lutava com a minha segunda crise existencial do dia, passou por mim, nada mais nada menos do que Laura. Isso mesmo. Estendam o tapete vermelho, porque ela chegou.
Laura vestia um vestido verde claro, de uma manga só e um coque embutido enlaçado em tranças enviesadas. E lá no alto, brilhante, uma coroa. Discreta, mas uma coroa. Bom, se ela quiser ser princesa no meu lugar, dou-lhe de muito bom grado o meu posto. Ela apenas sorriu para mim, um daqueles sorrisos forçados. E parou frente o espelho da escadaria, vendo se os cabelos permaneciam alinhados. Claro que permaneciam alinhados, né? Ela deveria ter passado umas trezentas toneladas de gel caro para que aquilo ficasse tão perfeito. Eu não consegui falar nada, só fiquei ali, parada, olhando. E depois segui, já que 1) eu não podia perder tempo invejando ninguém 2) eu precisava dá uns bons tapas na cara do Lorenzo e claro 3) o meu vestido era mais bonito.


Como eu suspeitava, Lorenzo estava em seu quarto. Eu pude ver que ele estava sentado na sua escrivaninha, rabiscando qualquer coisa – abri a porta sem bater, relativamente devagar para que ele não me desarmasse com o seu olhar. Claro que eu ainda estava meio sem jeito depois daquela coisa toda da sala de vídeo. Pigarrei para chamar a sua atenção, até que Lorenzo olhou para mim, com o olhar ainda distante e só depois de muito tempo fez um sinal para que eu entrasse.
Eu estava com muita raiva, mas o jeito como ele me olhou, a tristeza que saltava dos seus olhos me sufocou e fiquei sem fala. Então um desespero atormentador me tomou e eu nem perguntei se ele estava bem, um “você precisa me ajudar” brotou da minha boca antes que eu pudesse tapá-la.
- Tudo bem com você, Ana?
- Não. Nada bem. Eu tenho que enfrentar todas aquelas câmeras e pessoas. Sozinha.
Ele pegou a minha mão e me levou até o espelho. Eu não entendi muito bem o que ele estava tentando fazer.
- Quem você vê aí?
Era eu. Óbvio. Me deu vontade de dá uns tapas na cara do Lorenzo e depois sair correndo. Como é que isso iria me ajudar? Ele deveria estar rabiscando algo para eu falar.
- Ora, Lorenzo. Sou eu e você.
- Bom. Muito bom. – ele disse sorrindo.
- E como isso vai me ajudar a escrever alguma coisa que tenha nexo e não contenha as palavras “vou desmaiar”? Colabora, né!
- Você e eu. Essa fórmula não vai funcionar apenas frente a esse espelho. Você e eu, lá fora também. Você e eu, sempre que você quiser. Vai ter você e eu, até quando você não quiser. E tudo bem se você vier com mil e uma desculpas sobre “eu não sei fazer a droga de um discurso”. Ninguém sabe, Ana. As pessoas só falam o que vem no coração, que é o que importa no final das contas.
Aquilo era bonito. O que ele falou. Se eu tivesse ouvido em outro momento, as palavras me calariam. Mas agora não é outro momento.
- Eu não vou conseguir, eu sei o meu limite. Eu vou vomitar, e provavelmente cair de cabeça na sala e todo o mundo vai ver que eu não sirvo pra ser princesa. Ao menos essa última parte é boa.
- Ai Meu Deus, Ana. Você pode errar. É permitido. É humano. As pessoas acertam e erram e acertam outra vez. Mas não desistem, porque se você desistir antes de acertar, você vai terminar cercada por quatro paredes, numa sala escura, sem ninguém para desejar bom dia. E no final, você vai ver que você errou de qualquer forma. Quer dizer, não de qualquer forma. Você errou da pior forma possível, você errou sem nem mesmo tentar acertar.
Engoli em seco. E ele não parou.
- Você vai encarar todo mundo e falar o que vem daqui – ele tocou no meu peito – do teu coração. E que se dane se tiver nexo ou não. E que se dane se nem todos estiverem de queixo caído porque você não usou duas ou três palavras, as quais precisa-se de um dicionário para traduzi-las. Eu sei que o que passar pela tua cabeça é “É fácil falar. Ele já está acostumado com isso mesmo”. Não, Ana. Não estou acostumado com o fato de ter que passar horas em reuniões, não estou acostumado com o fato de escrever relatórios sobre quantas vezes eu respirei por dia, não estou acostumado com o fato de ter os olhos do meu pai me testando sempre que faço algo de errado. E eu sempre faço algo de errado. Não estou acostumado com o fato de fazer discursos. Não estou acostumado com o fato de ter essa vida aqui, de estar (ou não) noivo. Não estou acostumado com o fato de ter que te provar 24 horas por dia que você é capaz de fazer coisas extraordinárias.
Ele pausou depois de falar seguidamente sem respirar. Como eu queria cair ali no chão e passar seis dias chorando. Como eu gostaria de ser capaz de inundar aquele quarto de lágrimas e sair velejando uma caravela como Colombo fez para chegar ao Brasil. Mas eu não fiz nada disso, apenas continuei ali, o encarando. Esperando que ele levantasse a cabeça novamente para que eu pudesse dizer que ele “está muito enganado ao meu respeito”. Só que ele foi o primeiro à levantar a cabeça e a voz:
- Não estou acostumado com o fato de muito provavelmente estar apaixonado por você – ele completou.
- Lorenzo, eu... – eu perdi a maldita da minha voz.
- Eu só acho que você tem que fazer isso – ele disse me abraçando – porque ninguém mais conseguirá fazê-lo por você.
  
Nós ficamos calados, durante o abraço mais demorado da minha vida. O meu rosto estava acomodado no seu pescoço e eu jurei que o mundo poderia acabar ali mesmo. Naquele instante.
Lá vem eu exagerando outro vez.
Tudo bem. Eu não estava exagerando.


sexta-feira, 27 de junho de 2014

# Capítulo 10


Passei a madrugada inteira tentando pensar numa boa maneira de iniciar um texto, um discurso, uma apresentação. Passei a madrugada inteira achando que talvez eu tenha sido agraciada com todo azar e falta de talento do universo, porque não saiu uma única linha. Peguei no sono entre as três e quatro da manhã.
          O despertador começou a alarmar as nove em ponto. E lá estava eu lutando contra a preguiça matinal e contra os raios solares que invadiam o quarto. Tudo bem, eu não funciono pela manhã. Eu tento convencer o meu relógio biológico de que ainda não posso sancionar uma lei, mas que estou trabalhando para que isso aconteça. Ao meu lado está o papel de ontem, completamente amassado. Eu devo ter dormido por cima dele uma boa parte da noite. Nele está escrito em letras curvadas e pontiagudas “Aqui jaz a minha falta de criatividade”. E bom, eu não posso começar um discurso assim.
            Depois de um banho demorado na banheira, usando uns sais que encontrei no armário da pia, e de estar vestida com um vestido verde água, estou penteando os cabelos na frente do espelho. Os prendo em uma espécie de coque-clean-bem-engraçado que a gente costumava fazer no ensino médio porque nós achávamos casual e sexy. Como éramos inocentes. Os meus olhos estavam bem apagados, até passar um pouco de delineador. E finalmente, eu poderia descer. Hoje não fazia frio. Hoje tinha sol. Eu poderia entrar no lago.
            Quando eu cheguei a mesa, depois de descer as longas escadas e passar um certo tempo encarando a tela da mamãe, perguntando-me onde estariam todos os vídeos caseiros que Papai comentou no primeiro dia, vejo que apenas ele está ali. Sentando. Com um jornal na mão. E lembro que nós não conversamos direito desde que eu cheguei. Olga me explicou que ele está muito ocupado com toda essa anunciação do reino, cuidando da minha segurança, e de “negócios de estado”.
            Ele me viu entrar e seus olhos saltitaram, brilharam, os seus olhos ficaram felizes.
            - Ana – ele disse enquanto se levantada para me dar um abraço.
            - Majestade – eu disse em tom de brincadeira, abraçando-o de volta.
           - Eu estive ocupado demais, Ana. Desculpe se me desliguei de você esses dias – ele puxou a cadeira para que eu sentasse, agradeci com um sorriso.
            - Eu entendo. Você deve ter as suas responsabilidades... e agora, tem essa apresentação. Olga me explicou.
            - Olga sempre me salvando.
            - Nos salvando! Onde está vovó?
        Assim que a pergunta saiu da minha boca. Vovó entrou na sala acompanhada de Lorenzo. Ela segurava seu braço. E eles sorriam. Eu sorri por eles estarem sorrindo.
            - Qual é a piada? – papai perguntou rindo.
         - Óh! A curiosidade matou o gato, Eduard! – vovó disse enquanto batia no ombro de papai e Lorenzo puxava-lhe a cadeira. Antes de sentar-se ela me envolveu com um abraço.
            - Ana! – A voz de Lorenzo estava mais sonora hoje. Como se ele tivesse praticado francês há poucos minutos e as palavras ainda saíssem de sua boca.
            - Lorenzo! – eu disse sem olhar para ele.
            - E onde estarão os outros, vovó?
            - Todos tomaram o café da manhã bem cedo. Foram cavalgar. Elisa, Jorge e Laura.
Lorenzo engoliu em seco. Eu pude ver. Eu não sou cega. Sempre que Laura aparece ou o seu nome é pronunciado, Lorenzo engole em seco. Então, matematicamente eu tinha a pá, e a terra estava basicamente mexida, se eu tivesse coragem, eu poderia cavar. E eu poderia vender coragem, se ela pudesse ser vendida em frascos.
- Lorenzo, eu gostaria de ir até o lago, você poderia me acompanhar? – eu disse enquanto tomava uma torrada de morango nas mãos.
- Certamente – ele me olhou com os olhos estreitos, como um gato preste a atacar à presa.
Mas o gato da história sou eu.
- Mas ele mal comeu, Ana – vovó gostava de ver as pessoas comendo.
- Eu não estou com tanta fome, Sra. Pérola. Eu também levarei uma torrada de morango.
- Não precisam se preocupar com comida. Me certificarei de enviar um cesta de piquenique – meu pai findou a conversa e nós saímos andando, muito agradecidos. Eu bem mais.
Mas eu pude ouvir antes de fecharmos a porta, e aposto que Lorenzo também um “Acho que teremos um casamento” espalhar-se pelo ar.
Quando chegamos a sala de estar, pedi um tempo, precisava ir ao meu quarto pegar algo. Algo que eu planejava usar há muito tempo.


Quando pus os pés com a respiração ofegante novamente na sala de estar, Lorenzo estava sentado num dos sofás cor de marfim. Me encarando com o mesmo olhar de sempre. O mesmo olhar que me deixava maluca.
            - Então qual é o plano, Princesa?
            - Ora, não pense que está perdoado por ontem.
E saí sorrindo, sentindo os seus passos logo atrás de mim.
Assim que saímos do castelo e pude sentir o sol penetrar a minha pele, eu saí em disparada em direção ao lago. O que espantou um pouco os funcionários que trabalhavam no jardim. Corri como se tivesse 7 anos. Eu já estava perto do lago quando olhei para trás sorrindo e Lorenzo não tinha saído do lugar. “Você vai vir ou o quê?” – eu perguntei gritando. Ele revirou os olhos, baixou a cabeça e esfregou as mãos nas têmporas. E depois foi a vez dele sair correndo como se tivesse 7 anos.
Correndo na minha direção.
Correndo na minha direção, tropeçando numa pedra e terminando caindo exatamente sobre mim.
Nós gargalhamos por muito tempo. Nós ficamos um sobre o outro por mais tempo ainda.
            Até que ele disse uma coisa que me fez pensar por longas horas logo depois da cena chegar ao fim.
            - Eu tinha esquecido como era – ele disse puxando um fio dos meus cabelos dos meus lábios.
            E eu não precisei mais me importar com as pessoas nos olhando.
            - Esquecido como era o quê? – minha respiração estava incontrolavelmente ofegante.
            - Sorrir assim.
Então ele caiu ao meu lado. E fiquei ali parada, tentando entender o sentimento que crescia no meu coração e acabara de invadir a minha barriga em formato de borboletas. Ele também estava parado. Esperando que eu falasse alguma coisa. Esperando uma resposta. Mas eu não podia dar uma resposta para aquilo. Eu não tinha uma resposta para aquilo.
Eu só podia levantar, caminhar até o lago e não ficar vermelha depois de notar que nós havíamos chamado atenção de boa parte do castelo. E foi exatamente isso o que fiz.
Não demorou muito até ele me acompanhar. Ele havia tirado os sapatos. Eu pude ver quando ele sentou ao meu lado. Ele tinha pés tão bonitos, tão brancos, quase transparentes. Eu poderia contar a microvascularidades azuis que surgiam na sua pele, eu podia imaginar um oceano, eu até imagine peixes nadando. Ele fez o que sempre faz, começou a jogar pedrinhas no lago. As pedrinhas fizeram o que sempre fazem, quicaram, quicaram e afundaram. Eu fiz o que eu sempre faço, ficar em silêncio.
- Então, o que você queria me chamando para cá? – ele pigarreou.
Eu havia esquecido o verdadeiro objetivo dessa vinda para cá. O que um esbarrão não faz com a gente, hein!
- O que você acha? – fiquei de pé, caminhei até a margem do lago e tirei o vestido. Seria muito aventureiro dizer que estava completamente nua. Imaginem só as manchetes nos jornais. Mas não, estava de biquíni. – Vai ou fica? – eu disse virando para Lorenzo, e eu quase caí numa crise de risos. Ele estava basicamente sem ideia do que eu estava fazendo.
- O seu pai não vai gostar nada disso. – ele disse sorrindo feito bobo, ele disse com os olhos ainda serrados.
- Não é como você fosse ser enforcado.
Então eu mergulhei no lago. E ele mergulhou atrás de mim.
- Você não pode induzir as pessoas ao erro, Ana. Isso é feio – ele jogava gotículas de água no meu rosto.
Eu gosto de ser prática, então praticamente joguei o lago na cara dele. E depois afundei-lhe a cabeça. Ele retornou sem ar, eu continuava sorrindo.
- Ana! Eles podem retornar com a pena de enforcamento quando você mata um futuro rei. – ele disse tentando boiar na água.
- Eu só estava brincando. Afundar a cabeça dentro d’água faz parte. Ninguém aqui queria te matar.
- Eu não me refiro a me afogar no lago.
- E então se refere a quê?
- Ora! Me refiro a esse biquíni.
E foi a vez dele afundar a minha cabeça dentro d’água.
E nós ficamos ali. Naquela água que hoje estava morninha. Sendo regados pela luz solar. E basicamente encarando o flerte do outro. Era visível, só a gente não podia ver, que a gente se gostava de alguma forma.
Assim que uma das funcionárias – que eu soube chamar-se Rosa – apareceu na margem deixando a nossa cesta de piqueniques e toalhas, saímos do lago. Eu optei por tomar suco de laranja, e Lorenzo escolheu um pote que continha uma espécie de doce que era famoso em Lísia, eu experimente e achei muito parecido com Mousse de manga. Isso me fez lembrar como eu sinto falta do Mousse de manga da tia Janine.
Enquanto ele saboreava o doce em compota, eu pude ver entrando com botas vermelhas – as botas vermelhas de sempre – Laura. E ela estava olhando para gente. Eu só não sabia há quanto tempo. E foi mais ou menos aí que eu resolvi desenrolar a pauta que me fez chamar Lorenzo ao lago.
- Qual é a tua e a da Laura? – perguntei enquanto roubei uma colherada do doce-vulgo-mousse-manga.
Lorenzo engoliu em seco. Eu esperava que ele engolisse.
- Laura é... bom, ela é tipo... ah sei lá, Ana.
- Sei lá, Ana? É claro e evidente como a presença de Laura te deixa desconfortável. Ela aprontou alguma com você em Placius? Vocês eram inimigos? Vocês são?
- Não é bem isso.
- E o que é?
Ele olhou para mim, meio que pedindo socorro.
- Acho que isso não interessa mais, Ana.
- Me interessa.
- Te interessa?
- É, Lorenzo. Me interessa.
- Por que te interessa?
- Porque me incomoda te ver assim.
Eu esperei alguma expressão que me fizesse pensar que tudo aquilo era paranoia, mas não encontrei. 
- Ok, Ana. É ela. A Laura.
- Eu sei que ela é a Laura.
Daí eu lembrei da nossa primeira conversa. Então a minha ficha caiu. “Quem disse que eu nunca me apaixonei de verdade?”.
E foi a minha vez de engolir em seco.


Nas primeiras horas da tarde, após o almoço tentando não encarar Laura e Lorenzo, me vi pensando no que havia acontecido no jardim. Em como exclusivamente naquele dia havia nascido um sol tão quente como nos tempos de verão. Pensei no convite que fiz à Lorenzo de irmos até o lago. Pensei no nosso esbarrão, nele retirando o cabelo do meu rosto. Lembrei do sorriso, de como os seus cabelos loiros misturam-se bem com os seus cílios cor de prata. Notei que os seus olhos estavam mais cintilantes, e o meu coração mais acelerado.
Quando o relógio badalou quatro horas e Olga veio me chamar para a sala de leitura para a primeira prova do meu vestido, eu sabia que Lorenzo também estaria lá. Fazendo a primeira prova de seja lá o que ele usará no cerimonial de apresentação. Então respirei fundo e fui. Rezando para Deus me poupasse de encontra-lo. Acho que Deus provavelmente estava muito ocupado com orações mais grandiosas do que a minha mera oração de indecisão sentimental. Porque lá estava Lorenzo sobre uma plataforma em formato oval com três mulheres alfinetando as suas pernas. Coitado.
Ao adentrar a sala tentando ignorar Lorenzo, cumprimentei a estilista que segurava um longo quadro branco onde havia o – para tudo agora, meu Deus – o vestido mais pomposo e absolutamente estonteante que eu já havia posto os olhos.
            - Me diga que esse é o meu vestido, pelo amor de Cristo. – eu disse surtando, e pude ver a risada de Lorenzo. Nem a risada de Lorenzo me abateria naquela hora.
            Olga e Edite (a estilista), riram da minha reação. Os sorrisos maiores foram guardados quando elas me ouviram gritar do provador quando eu coloquei aquela coisa de Deus no meu corpo. Eu estava parecendo o céu de madrugada.
            Os sorrisos foram substituídos por queixos caídos, quando eu saí de lá. Edite tinha mãos mágicas.
           - E você ainda diz que não nasceu para ser princesa – era Lorenzo falando e saindo do segundo provador, num terno impecável. Eu quase desmaiei.


 

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