Lá estávamos nós, atrás das portas do
salão onde ocorreria a anunciação, observando papai e vovó desenrolarem
assuntos de Estado frente as câmeras, enquanto jornalistas posudos e intricados
ajustavam as suas canetas caras e os seus blocos de papel. No entanto,
qualquer um poderia saber, pela forma como eles meneavam a cabeça, que tudo
aquilo que papai falava era apenas uma enrolação do que estava por vir. De quem
estava por vir.
Lorenzo
estava comigo, assim como Olga. Acho que as pernas de Olga estavam levemente
cambaleando. O que não é um bom sinal, já que eu não me lembro de ter visto
Olga nervosa. Laura estava sentada num dos sofás pomposos e inúteis da sala,
folheando uma revista de celebridades de Lísia. E eu pude ver duas ou três
vezes Lorenzo olhando para ela. Não que eu me importasse.
Mesmo
que a minha cabeça estivesse produzindo cenas de como eu iria cair antes de
entrar no salão ou mais tarde antes de ir ao pódio da varanda onde toda a
população de Lísia me esperava, metade do meu coração estava perdido e
mergulhado no que Lorenzo havia me dito “Não estou acostumado com o fato de
muito provavelmente estar apaixonado por você”.
Nem eu, Lorenzo. Nem eu.
Laura aproximou-se de
mim, chamando a minha atenção com um papo que provavelmente iria me deixar mais
nervosa.
“Parece que a rede de
televisão brasileira também foi comunicada. Vai ser realmente abstrusa sua vida
após a anunciação. A fama é uma coisa complicada” – ela disse sorrindo e depois
voltando a atenção para a revista.
Que tipo de pessoa usa a palavra "abstrusa"? Se Dora estivesse aqui, ela provavelmente teria feito algum coisa a respeito. Mas Dora não está aqui.
Eu pude ver a cara feia
que Lorenzo fez para ela. Então ele trocou o meu braço e eu pude ler em seus
lábios um “tudo vai ficar bem”. Até que Olga chamou a minha atenção para o que
Eduard estava prestes a falar.
- Nesse momento, eu
gostaria de pedir a atenção de todos para lhes fazer um comunicado. A população
de Lísia e toda a imprensa mundial sabe que a minha querida esposa Helena – nesse momento vovó segurou a sua mão –
faleceu num acidente automobilístico. Como noticiado na época, foi dito que a
minha filha Anna estava morta...
Silêncio na plateia até
que uma jornalista de óculos de grau enorme, levantou a mão e se dispôs a
falar.
- Com a sua licença,
Vossa Majestade, o senhor disse “estava”?
- Sim. Eu disse
“estava”.
- Então, quer dizer que? – a jornalista
gaguejou.
- Que Anastásia nunca
morreu.
O barulho do salão
tomou uma proporção enorme. Com flashes, mãos sendo levantadas e pedidos de
esclarecimento. Mas só precisou que vovó Pérola levantasse uma das mãos, como
se pedisse silencio. E o silêncio se fez. Então, as mãos foram sendo levantadas
devagar e as dúvidas foram sanadas.
“Eles não vão contar a
história real, Anna. Isso atrairia uma visão errônea para o reino” – Olga
cochichou nos meus ouvidos. Eu assenti com o coração nas mãos.
Um jornalista
carrancudo e baixinho, levantou uma das mãos e dispôs-se a falar.
- Então, Vossa
Majestade, como o senhor descobriu que a princesa Anastásia está viva?
- Eu sempre soube – mais murmurinho – Anna foi criada pela
tia no Brasil, tomando aulas de como governar um país, de como se portar com
uma princesa – que mentirada –
enquanto Lísia fechava acordos que viriam a calhar quando Anna realmente
aparecesse. Ela completou 18 anos, e nós vimos que seria a hora de trazê-la de
volta.
Eu pude ver que a
imprensa Brasileira que ocupava o meio da sala ficou exasperada. Começaram a
levantar as mãos, uns sobre os outros. Seria cômico, se não fosse trágico.
-
Então a princesa Anastásia foi criada no Brasil? Mais precisamente onde? Então
temos uma princesa de origem Brasileira – ela soltou um riso breve.
O
rei sorriu também.
-
Sim. Nós temos uma princesa de origem Brasileira. Como vocês sabem, a mãe de
Anna é uma Brasileira nata. Anna morava em Natal. E ela adorava isso.
Uma outra jornalista,
que pude perceber logo depois ser da CNN, perguntou outra vez.
- E quando vamos
conhecer a Princesa?
- Não vai demorar muito
– vovó falou sorrindo.
E
qualquer um poderia ver que ela estava brilhando por dentro.
- Então, é com imenso
prazer, que eu vos apresento, Anastásia Lazzari Dubiela Bradston Bertoli,
princesa de Lísia. – vovó continuou.
Como
assim eu tenho todos esses sobrenomes? – eu sussurrei para
Lorenzo e ele só conseguiu sorrir.
Então Olga me disse
para ir, e foi exatamente isso que eu fiz.
Os flashes me cegaram,
o meu estômago começou a embrulhar e eu só consegui pensar em “não vomite, não
vomite, não vomite, não vomite”. Papai veio me buscar e assim que ele pegou em
minhas mãos, todos aplaudiram. Eu nunca havia visto tantos jornalistas, câmeras
e gente reunida por uma causa. Por minha causa.
Então eu me
lembrei do discurso.
Eduard me abraçou e
disse no meu ouvido “está pronta para discursar, querida?” e eu fiquei sem
reação. Ele me guiou até o meu lugar, uma cadeira branca e acolchoada, que se
vista de longe lembraria uma nuvem. E quando eu me sentei e finalmente ergui o
queixo, todos ficaram boquiabertos. E eu sabia que eles estavam pensando em
“ela é igualzinha à mãe”.
Papai, vovó, os
jornalistas. Todos esperavam que eu falasse algo, mas eu não consegui falar
absolutamente nada. Até papai ter percebido que eu havia travado e pulado para
o plano B.
- E claro, não podemos esquecer-nos
de chamar, o futuro rei de Lísia: Lorenzo Voltolini Becker Engerhoff Terceiro,
príncipe de Placius.
Lorenzo atravessou o
salão com um olhar gracioso e tenaz para todas as pessoas que ainda conservavam
interrogações sobre a parte do “futuro rei de Lísia”. É claro, que grande parte
de todos aqueles jornalistas conheciam a tradição de casamentos entre os dois
reinos. É função deles conhecer. Mas ninguém pode culpa-los de pensar a
respeito, qualquer pessoa com mais de dois neurônios, pensaria.
Ele ocupou a cadeira
acolchoada que ficava do meu lado, e num impulso eu, simplesmente, segurei a
sua mão. O que – minutos depois – me deixou sem graça, só que já era tarde
demais. Esse singelo ato fez com que mais sete mil flashes jorrassem sobre os
nossos rostos. Sobre as nossas mãos. Lorenzo pigarreou, chamando a atenção, dos
jornalistas e disse:
- Como já fui
apresentado pela Vossa Majestade Eduard, rei de Lísia, sou Lorenzo e se
deletarmos a probabilidade de Anna me mandar pastar – todos riram nessa parte –
nos casaremos. Não é mesmo, Anna?
AI MEU DEUS! UMA
PERGUNTA. Eu preciso dar uma resposta. Mas qual resposta?
E eu só consegui
consentir e sorrir.
Mas todos ali sabiam
que eu precisava falar alguma coisa, me apresentar, fazer uma piada, mandar um
olá. Eu precisava fazer, então eu fiz.
- Acredito que a
maioria de vocês – eu comecei olhando para baixo e culpando-me, reprimindo-me
com um “Droga, ana! Olhe para frente!”, até que eu levantei o olhar e comecei a
imaginá-los como amigos íntimos. Vi o rosto de Hanna substituir um jornalista
barbudo e sério com um tique nos olhos. Vi o sorriso de aprovação de Dora na
jornalista curiosa que interrogou o meu pai. Vi os cabelos de Marina apontar
numa das jornalistas brasileiras que segurava uma caderneta bonitinha verde e
amarela. E por fim, vi os olhos confortantes da tia Janine num dos jornalistas
da primeira fileira. Elas estavam em algum lugar assistindo tudo aquilo, e eu
precisava fazer isso, se não por mim, ao menos por elas. Eu mantive a minha
cabeça erguida, com olhos orgulhosos -... estão aqui para presenciar apariação
de uma nova princesa, de uma nova Bradston, que irá governar a nossa Lísia. Espero
fazer tudo aquilo que me for cabível e continuar sendo quem eu sempre fui. Eu
não sou uma princesa. Eu sou a filha de Eduard e de Helena, a neta de Pérola, a
sobrinha de Janine, a noiva de Lorenzo. Eu a soma das partes do que uma
princesa pode ser.
Lorenzo apertou a minha
mão. Quase gritei um “ufa!”, mas depois achei que provavelmente falei uma
besteira enorme, até que vovó puxou palmas, até que todos me aplaudiram como se
eu realmente fosse alguém que merecesse isso. Mas ainda não tinha acabado. Os
jornalistas pediam licença para perguntas, dando início ao filme de terror “Ana
está enrascada - parte II”.
- Princesa Ana, pelo
visto as tradições cerimonias de Lísia serão cumpridas. Se me permitir
perguntar, como Vossa Alteza e Príncipe Lorenzo se conheceram?
Aposto
que as perguntas sobre Lorenzo seriam as mais frequentes. Claro que não iriam
me perguntar sobre a minha cor preferida ou o meu gosto musical. Isso não rende
matéria.
- Posso ser sincera? –
tentando parece descontraída – Nos conhecemos quando eu tinha 07 anos. E
voltamos a nos ver muito recentemente – eu
não poderia dizer “há um mês atrás”. Eu não poderia dizer a verdade.
- Ok! – disse uma das
jornalistas de Lísia que estavam logo à frente – Eu estou totalmente encantada
e aposto que as pessoas de casa também! É inacreditável o quanto você parece
com a Rainha Helena.
Isso
não é uma pergunta. O que fazer com uma afirmação?
- Seria estranho se eu
falar que ouço isso o tempo inteiro? – todos
sorriram.
O dia foi tomada por
mais e mais perguntas. Algumas direcionadas à Lorenzo, outras à mim, vovó e
papai. Algumas da imprensa brasileira, afirmando que é um tanto irreal a minha
história. Mais trágica que irreal, eu diria. Mas a última pergunta, bom, a última pergunta não
foi para mim.
- Príncipe Lorenzo –
agora a jornalista curiosa que mais tarde apresentou-se como Claire – como foi
se apaixonar por Ana?
Eu quis morrer, Lorenzo
ficou pálido. Todo o salão parou. No final das contas, essa era a única revelação
que a maioria dos jornalistas tinham interesse. Achei que escaparíamos dela.
Estava errada mais uma vez.
Lorenzo me encarou, na
esperança de que alguma ajuda saísse dos meus lábios, mas nada saiu. Nós
permanecemos nos olhando por um bom tempo. O que ele iria responder me
interessava. Sei que eu não deveria estar tão interessada, mas eu estava.
Lorenzo gostava de mim? Então ele se virou para as câmeras. Afinal, aquilo
estava sendo transmitido em rede mundial. Ele deveria mentir se precisasse.
Você sabe, uma mentirinha para encobrir uma verdade dolorosa às vezes não faz
mal.
- Real. Foi a coisa
mais assustadoramente real que já me aconteceu. E vejam vocês mesmos, como eu
não iria me apaixonar por ela?
Eu
o encarei. Não sei ao certo, mas quando os meus olhos navegaram na correnteza
cintilante dos olhos de Lorenzo, eu vi flutuar e erguer velas um barco
pequenino e branco que continha a palavra sorria
entalhada na sua proa. E eu sorri.