terça-feira, 27 de maio de 2014

# Capítulo 2

Enquanto eu me preparava para receber as meninas, eu pensei que este seria o meu décimo oitavo aniversário sem os meus pais. Não o décimo oitavo aniversário propriamente dito. Mas eu não me lembro deles em nenhum. Eles morreram num acidente de carro, um mês depois de eu completar 3 anos. O destino não deveria fazer isso com a gente. Ninguém deveria ficar órfão aos 3 anos. Ninguém deveria ficar órfão de qualquer maneira. Ninguém está preparado pra ficar.  Foi quando virei a filha postiça da tia Janine.
 Eu não conheci os meus avós paternos, eles também morreram. Morreram antes que eu pudesse nascer. É uma longa e infinita fila de perdas. De pessoas que foram embora – por vontade própria ou não. E quanto aos meus avós maternos, tem o vô Alberto e a vó Lina. O nosso problema é de geografia. Eles moram na região Sul. Nós morávamos lá também. Mas o tio Pablo, marido da tia Janine, teve que mudar-se de cidade pelo emprego. E cá estou eu. Morando em Natal. E cá estou eu no melhor lugar no mundo. Sofi é minha irmã postiça. É a única filha dos meus tios.
Depois de deixar o meu quarto um pouco mais apresentável (mesmo que as meninas já conheçam bem a zona), o meu telefone tocou. Era Arthur.
- Oi, Arthur.
- Boa noite, Ana. Você tá fazendo o quê?
- Preparando umas coisas, as meninas vêm para cá às oito.
- Então eu fui dispensado?
- Não, bem, não é que... bom, você sabe. Nós sempre fazemos isso.
- Como um rito de passagem – ele completou.
- Praticamente – eu disse sorrindo.
- Tudo bem. Te ligo amanhã. Te cuida. Ah! Ana, eu só liguei pra dizer... você sabe, pra desejar um feliz aniversário.
- Ok. Obrigada. Obrigada pelas flores mais uma vez – eu respondi olhando para o relógio.
- A gente costuma fazer essas coisas pra quem a gente gosta – ele disse.
- É. A gente costuma. Até mais – e eu desliguei, dando fim a um papo que qualquer garota gostaria de levar, mas que eu não aguento levar.
Meia hora depois e nós estávamos assistindo a um episódio de New Girl. Exatamente o episódio três da primeira temporada, quando a Ellie está dançando de uma forma hilária na pista.
            - Isso me lembrou que hoje está rolando a balada das baladas e que amanhã é feriado – Hanna comentou.
            - E nós estamos perdendo – Dora completou.
            - Vocês podem ir. Tudo bem por mim – eu disse.
            - Não. Não. Não. O quarteto só funciona sendo o quarteto – Marina falou exasperada.
           - É, Ana. É o quarteto desde sempre. Desde a escola. Desde que eu beijei o primeiro garoto – Dora disse sorrindo.
            - É. Desde a primeira vez em que fiquei bêbada – Hanna agitava as mãos enquanto proferia a frase.
            - Desde a primeira vez que viajamos para Porto Seguro – foi a vez de Marina.
            - Vocês são saudosistas demais – provoquei.
            - A gente deveria ir. Ainda são 10 horas – Hanna sugeriu.
            - Isso! E hoje é o teu aniversário. 18 anos. A gente precisa comemorar. Já cumprimos o ritual. Você já foi oficialmente declarada como uma cidadã maior de idade – Dora falava enquanto puxava o meu braço.
            - E nós já estamos praticamente prontas. Só precisamos de maquiagem e um salto alto. Ok. E mais perfume. – Marina implorou.
            - Vaaaaaamos, Ana! – Elas gritaram e eu senti a casa estremecer.
Eu balançava a cabeça em sinal negativo, fazendo isso mais pela vontade de ser do contra, do que pela vontade de ficar em casa.
            - Você pode estar desperdiçando a chance de encontrar o garoto da sua vida. Ok. Você já tem o Arthur, mas... – Agora Hanna puxava a minha mão.
Encontrar o garoto da minha vida. Um garoto do sorriso que me faça sorrir. Um garoto de olhos cinza. O garoto da biblioteca.
            - A maquiagem está naquela caixa rosa – eu disse sorrindo.
            E todas gritaram. O que eu iria descobrir depois, logo depois, é que: quem procura, acha.


A fileira de carros ocupava não só a rua principal da boate, mas as ruas laterais também. E lá estavam não só todos os alunos da nossa sala, mas todos os alunos da Faculdade. E pensar que todos os alunos da Faculdade poderiam estar ali, me encheu os olhos. Porque talvez, o carinha estaria. Ok. Ok. Foi um sonho, Ana.
- Como assim esgotou, moça? – Marina reclamou com a moça da bilheteria que negava a nossa entrada.
- Eles estão entrando! Todos eles! Você não está vendo? – Hanna disse.
- Eles tem entradas! – A moça respondeu, tentando ser educada.
- Olha, moça, é o seguinte, essa garota aqui – Marina apontava pra mim – completa hoje 18 anos. Você já completou 18 anos alguma vez? Você sabe o quanto nós queremos entrar nessa boate?
- Nós não queremos entrar. Nós precisamos entrar - Hanna completou.
- As entradas esgotaram. Vocês terão que me desculpar.
Dora permanecia calada, apenas observando a cena. Rindo por dentro. Eu também.
            - Olha, moça, eu não quero ser irritante. Mas, você não pode nos colocar para dentro mesmo?
            A recepcionista negou mais uma vez. E continuamos ali sem entradas, sem festa, sem diversão. E agora sem reação, após ver o momento exato que a recepcionista colocou duas pessoas para dentro. Duas pessoas sem ingressos. E antes que ela conseguisse dobrar, Dora se manifestou.
            - Porque eles entraram ser ingresso? – Dora perguntou, ainda calma.
            - Não é como se eu precisasse respondê-la, mas existe uma coisa chamada lista VIP – ela disse sorrindo sarcasticamente e indo embora.
Ok. Nunca. Nunca mesmo desperte a besta arrasadora de Dora.
            - Ok. O seu nome é Marcela, certo? – ela disse enquanto a moça virava de relance - Então, Marcela, me chamo Dora. Dora Stanford para ser mais exata. O meu pai chama-se Edgar Stanford, para ser mais exata ainda. Isso te diz alguma coisa? Bom, se não te dizer nada, então provavelmente a Revista Stanford te lembra. E eu não sei exatamente quantas estrelas essa boate levou na avaliação da revista com repercussão internacional da minha família – ela enfatizou na parte com repercussão internacional da minha família – no ano passado. Mas eu me certificarei pessoalmente, na questão atendimento pessoal, de que ela não receba nenhuma. Nenhuma mera estrela. E claro, não me esquecerei de pedir o Carlos que mencione a educação dos funcionários.
            Eu vi que a moça ruborizou. E que agora tremia. Vi também que os olhos esbugalharam e o sorriso sarcástico sumiu. É diferente quando se está do outro lado da moeda.
            - Desculpe, Senhorita Stanford. Peço desculpas. Houve um erro de comunicação. Pormenores. Estarei lhe guiando para as melhores acomodações, com open bar por conta da casa – ela falou de forma arrastada.
Alguém falou open bar? Open bar é o nome do meio de Dora.
            - Resposta certa – Dora falou, sorrindo docemente e nos puxando em fila indiana.
Hanna sempre foi boa com maquiagem. Marina com cabelos. Eu com sapatos. Dora em nos meter em lugares lotados, mesmo quando as chances são zero.

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Nós fomos encaminhados por dois seguranças posudos para a área VIP. Em poucos minutos tínhamos ido do inferno ao céu. Em poucos minutos pulseiras néon foram postas nos nossos pulsos e tivemos toda e qualquer bebida liberada. Dora não era Dora Stanford, embora fosse parecidíssima. As pessoas costumam confundi-las na rua, na Faculdade, em qualquer tipo de evento. Dora era Dora Albuquerque. Dora não conhecia qualquer questão de estrelas em uma revista de cobertura mundial. Dora não se certificaria pessoalmente de nada. Dora tinha ideias brilhantes, mesmo que um tanto irresponsáveis. E o melhor de tudo era: ela nunca se importava com isso. Dora não era Dora Stanford. Dora era melhor.
            Eu bebi pouco. Eu precisava controlar Marina (a única com habilitação no grupo), a única que não poderia cometer a burrada de misturar bebida e direção. E era minha função naquela noite, não deixa-la beber. Era minha função naquela noite não morrer com 18 anos, nem deixa-las morrer com 19.
            Nós saímos por um tempo da área VIP. Possuíamos alguns conhecidos na pista. E fomos para lá. A batida que tocava era de uma música que desconheço. As pessoas estavam alucinadas. Dora e Hanna encontraram uns caras bem vestidos e conhecidos da Faculdade. Dora e Hanna se arranjaram. Eu não poderia fazer isso porque estava num quase-relacionamento e precisava supervisionar Marina.
            A minha função naquela noite não passava de parecer centrada, parecer uma irmã mais velha. E eu quase consegui. Só que, eu vi, por um milésimo de segundos um alguém muito, muito, muito parecido com alguém que eu conhecia. Mas não, não era o carinha da biblioteca. O carinha do sonho. Era o Arthur.
A luz estroboscópica me cegava um pouco, mas sim, era o Arthur. Mas não só o Arthur. O Arthur com alguém. O Arthur – e meu Deus do céu – o Arthur beijando uma garota que não era eu. As minhas pernas me levaram para mais perto, enquanto eu observada aquela cena baixa, suja, revoltante. Lá estava ele, amancebado com uma garota que me pareceu, pelos cabelos, a Bárbara de Comunicação Social. Ai meu Deus! Era a Bárbara de Comunicação Social! Eu pude ver o seu sorriso malicioso enquanto me encarava. Eu pude ver o seu sorriso malicioso enquanto segurava os dedos do Arthur.
Ele ficou meio pálido, mas talvez só fossem as luzes verdes se chocando em sua face. E eu corri. Corri dali. Daquele lugar que me parecia irreal. Que me parecia um pesadelo. Mas ele correu atrás de mim, a Marina correu atrás de mim, Dora correu atrás de mim, Hanna correu atrás de mim. E Bárbara correu atrás de Arthur, ninguém correu atrás de Bárbara. A não ser o melhor amigo do Arthur, o Marquinhos, que a agarrou pelo braço, e deixou Arthur correr sozinho.
O que me fez pensar mais tarde o quanto é triste você correr sozinho. O quanto é triste absolutamente ninguém correr atrás de você.
Nota mental: talvez eu perdoe Bárbara por isso.
            - Ana, Ana, Ana! – Arthur gritava enquanto corria entre as pessoas para me alcançar.
            Eu provavelmente bati em umas duas garotas que me encararam de forma estranha, como se eu tivesse acabado a bebida do bar. Mas eu nem estou bêbada, eu só estou fugindo de um cretino desgraçado, o qual eu nem sei se gosto. O qual, hoje às seis da manhã, antes do dia se tornar dia, me deu flores rosa-chá. Que espécie de garotos dá flores rosa-chá? Isso é tão... morto.
            Ele conseguiu agarrar o meu pulso depois de uns minutos de correria, quando eu esbarrei numa garota “wanna be”, e metade da sua vodca caiu sobre a minha blusa. Ok. Eu fui oficialmente humilhada.
            - Larga o meu braço, Arthur! – eu disse quase gritando.
            - Ana, a gente precisa conversar. Você... o que você viu...
            - O que eu vi foi a merda de um cara sacana fazendo seu papel: ser sacana. – Eu disse puxando o meu braço, usando uma força que eu não tinha.
            - Ana, foi só um beijo. Só um beijo idiota.
            - Ok. Foi só um beijo, Arthur.
            - Não precisa ficar chateada pra sempre. Eu sei que errei. Eu sei que... que fui um idiota... um grande...
            - Um grande idiota. É, você tem razão. Um grande idiota.
            - Nós vamos ficar bem, Ana? Nós vamos, não é?
            - Eu vou ficar bem. Eu estou bem. E obrigada por acabar com isso.
            - Ana... – ele sussurrou tocando os meus dedos.
            - Ah! E da próxima vez que for na casa de uma garota levar flores rosa-chá. Certifique-se se ela gosta goste de flores. Sobretudo de flores rosa-chá.
            As meninas nos alcançaram exacerbadas, e apenas permaneceram ali, em pé do meu lado. Até que eu desejei ver o rosto de Arthur se desmanchar, se transformar num borrão. Mas ele continuou ali, intacto. E eu saí, puxando a mão de Marina até a saída, enquanto Marina puxava Dora e Hanna. Fomos para casa sem falar absolutamente nada. Deixando primeiro Hanna, depois Dora. Quando paramos frente a minha casa, e eu me preparei para descer, Marina tentou pronunciar algo.
            - Espero que você esteja bem – ela disse.
            - Eu estou bem. Você sabe, ele não era o amor da minha vida.
            - Bom, eu sei.
            - Você sabe, com 18 anos a gente também recebe um certificado de aptidão para aceitar um coração partido. – eu disse sorrindo e abrindo a porta do carro.
            - Então vamos procurar um advogado. Eu nunca recebi o meu – ela disse sorrindo.
            Nós ficamos sorrindo por um tempo, enquanto eu encarava a rua.
            - O cara tinha um péssimo gosto para flores. Eu tenho um péssimo gosto para caras. Talvez estejamos quites.
            - Deixe de besteira, Ana – ela suspirou. Encarando a rua também.
E eu saí. Enquanto ela ficou esperando que eu entrasse sem cair no choro. Mas eu não iria cair no choro. Não agora. Não no banho. Eu não gostava do Arthur para ser sincera. Quer dizer, eu gostava. Mas não como se deve gostar de um quase-namorado. E no final da história, no fim das contas, a Bárbara de Comunicação Social me fez um favor: ter dado fim ao que já tinha fim.  


O resumo do resumo: quem procura realmente acha. Mas você não pode escolher o quê. 

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