A
janela estava aberta, a cortina movimentava-se lentamente com cada brisa que
passava. Eu não tive sonhos essa noite. Apenas fechei os olhos, e depois tudo
ficou escuro. Acordei antes do despertador. São exatamente cinco para seis.
Antes de dormir, eu estava deitada no chão com os pés sobre a cama. Eu
costumava ficar assim quando criança. Só que antes o que ficava sobre a minha
barriga era um boneca de pano chamada Duda, agora o que fica sobre a minha
barriga é o meu celular.
Quando
pisei no chão, a procura das minhas pantufas, pude sentir a case do meu celular
e logo depois, ao pegá-lo, ver exatamente 36 chamadas perdidas do Arthur.
Perdidas e não pedidas. A única coisa boa em ter feito aniversário ontem, é que
hoje é feriado. Um feriado em plena terça-feira. Então eu não preciso ir para
Faculdade encarar o Arthur mais uma vez. E nem repetir “estou legal” umas
setecentas vezes para as meninas.
Levanto-me
em passos curtos e me encaro sobre o espelho. Não gosto do que vejo. O meu
rosto está amassado e o meu cabelo parece ter acabado de sair, de um... digamos,
de um furacão. Regra número um de acordar apresentável: nunca lave o seu cabelo
à noite e vá para a cama. Regra número dois de acordar apresentável:
certifique-se de que não verá o seu quase-namorado numa boate beijando uma
garota de Comunicação Social. Regra número três de acordar apresentável: nunca
quebre as duas primeiras regras.
Após
uma chuveirada, me sinto melhor. Tudo melhora depois de um banho. Prendo o meu
cabelo num coque meio estou-em-casa-de-pijama-e-não-vou-sair, coloco uma
blusinha surrada que tem três vezes o meu tamanho, calço as minhas pantufas do
Homer, peço perdão a Deus e desço as escadas. Eu preciso tomar café. Um café
amargo, para combinar com o dia.
Enquanto
eu desço as escadas eu posso ouvir vozes, eu posso ouvir o meu nome. Mas
geralmente, nós não recebemos visitas. Muito menos visitas que falam o meu nome
às seis da manhã. E porque diabos todo mundo resolveu acordar às seis da manhã
num feriado? Um, dois, três degraus. Estou na sala. As vozes vêm da sala de
jantar. Uma parece bem grave.
-
Não é só o destino de Ana. É o destino de Lorenzo também – alguém o qual a voz
não consigo reconhecer.
-
Eu não sei se está na hora de... vocês... sabem... Ana saber de tudo – foi a
vez de tia Janine falar.
Saber
o quê?
-
Ora, Janine. Ela fez 18 anos e você sabe que isso deveria ter acontecido há
muito tempo – agora foi a voz de uma mulher, rouca, fraca.
-
Ela precisa ser apresentada à Lorenzo. Afinal, eles estão noivos desde os 7
anos.
Ok.
Agora eu sei que estou sonhando. Eu sei que daqui há alguns minutos o meu
despertador vai tocar e eu vou assistir New Girl ou dançar. Quem é Lorenzo?
- Mas ela não
sabe de nada. Seria um choque, um tiro no escuro – tia Janine falava
descontroladamente.
-
Ela terá que saber algum dia – o homem disse.
Noiva?
Eu estou noiva? Certo. Isso é um sonho. Portanto, eu posso invadir aquela sala
de estar e ninguém me mandará ficar quieta ou me acusará de espantar as
visitas. Porque daqui a pouquinho o meu despertador vai tocar. Tudo bem caso eu
invada aquela sala.
Eu pensei e agi. Dois
segundos depois eu estava lá dentro, encarando tia Janine, tio Pablo (eu não
havia escutado a voz dele até agora), uma senhora super bem vestida e um homem
com um terno que cheirava à bom gosto (aquele da voz grave), olhando para mim.
Ok. Hora de acordar. E eu não acordei. Ok. Isso não é um sonho.
-
Ana! – tia Janine correu até mim.
-
Noiva? Eu estou noiva? – foi a única coisa que consegui falar.
O homem do terno de um
bilhão de dólares caminhou em minha direção. Ficou quieto, me olhando, piscando
lentamente, piscando com os meus olhos. Ele tem os meus olhos. Meu Deus do céu.
Ele tem os meus olhos. E não só os olhos, o queixo também. Agora a senhora bem
vestida está tocando os meus cabelos como se eu fosse um ser marciano que caiu
por acaso na sala de estar durante uma reunião familiar. E ela está chorando.
-
Ok. Cadê as câmeras, tia? – movimentei as minhas mãos de um lado para o outro,
e depois caminhei pela sala como se procurasse uma pegadinha escondida.
-
Ana – a senhora falou – eu me chamo Pérola. E ele – agora ela apontava para o
cara posudo – chama-se Eduard. Ele é meu filho... e você, bom... você é a minha
neta.
Engoli
em seco. Eu tenho uma avó e ela não se chama Pérola. E eu tenho um pai, ao
menos eu costumava ter.
-
Acho que a senhora está enganada. Meus pais... – olhei para tia Janine pedindo
a sua ajuda. Ela baixou a cabeça.
-
Ana, eu sou o seu pai e nós precisamos conversar sobre isso. Nós todos iremos
explicar tudo à você. Com calma.
-
Eu acho que vou desmaiar – eu sussurrei perdendo o chão.
E foi exatamente isso o que aconteceu:
eu desmaiei.
Quando acordei, estava
no meu quarto. Rodeada de almofadas. E a porta estava fechada. O relógio agora
marcava nove horas. Não consegui escutar o despertador. Que se dane! Hoje é
terça-feira. Hoje é feriado. Eu estava tendo um sonho bem esquisito.
Alguém
bate na porta. Alguém não, a única pessoa que bate na porta antes de entrar
nessa casa é tia Janine, então tia Janine bate na porta.
- Tudo bem se entrar,
tia – eu disse com a almofada jogada no rosto. – Sabe, eu estava tendo um sonho
muito estranho. Eu tenho tido sonhos esquisitos ultimamente. Tinha um cara, um
terno de um milhão de dólares, uma velhinha que cheirava a lavanda, os olhos
seus olhos duvidosos, o silêncio do tio Pablo.
Eu pude sentir que ela
sentou ao meu lado. E passou as mãos nos meus cabelos, mas não falou coisa
alguma. Apenas ficou ali: me olhando. O que é estranho para ela. Ok. Resolvo
tirar a almofada do rosto e quem está ali não é tia Janine, nem Sofi, nem tio Pablo,
é a velhinha que cheira à lavanda.
- Então eu cheiro à
lavanda? – ela perguntou sorrindo.
- Tudo bem. Esse sonho
pode durar mais do que normalmente sonhos duram – eu disse, cobrindo o rosto
mais uma vez.
A
velinha que cheirava a lavanda e durante o sonho disse chamar-se Pérola,
retirou a almofada do meu rosto e com os dedos entre os lábios me pediu
silencio. Eu poderia gritar, mas algo lá no fundo, pediu que eu confiasse nela.
-
Os Bradston, reinam na Lísia desde o século XVI. Lísia é um país muito, muito,
muito distante do Brasil. Tão distante que talvez você nunca tenha ouvido
falar. Se você procurar na Mapa, provavelmente não encontrará. Lísia é a minha
casa. A casa de seu pai. E foi a casa da sua mãe por algum tempo. É a sua casa.
– ela parou por uns segundos, e nesse
momento eu pude me sentir com dez anos, quando a professora do primário nos
sentava em grandes tapetes e nos contava histórias – O trono passou para
muitos tataravós, por dezenas de bisavós, por outros avós, e terminou em seu
pai. Eduard, rei de Lísia. Sim, você é uma princesa – ela sorriu – No sentido mais literal da palavra – ela sorriu outra vez.
1) Meu pai está vivo.
2) Minha mãe está morta? 3) Ele é um rei. 4) Eu sou uma princesa?
Permaneci parada,
olhando para o teto. Eu não sabia o que falar. Eu não sei se eu deveria falar.
- Se isso não for uma
piada, quer dizer, isso tem tudo para ser uma piada, mas se não for... e a
minha mãe? E o acidente de carro? – eu pude sentir as lágrimas se formando nos
meus olhos.
- Houve o acidente.
Alguém tentou matá-los. Alguém tentou matá-la. E Deus poupou a sua vida e a de
seu pai, mas sua mãe... sua mãe... infelizmente não resistiu. Então, desta
forma, você é a primeira na linhagem de sucessão ao trono.
A minha mãe está morta,
eu sou sucessora de um trono? Eu nunca consegui concorrer a líder da turma no
ensino médio e de repente a velhinha da lavanda me joga uma bomba dessas, como
seu eu não fosse uma pessoa comum. Eu sou uma pessoa comum. Mas a única coisa
que me veio à cabeça foi o nome dela. Foi o nome da minha mãe.
- Ela realmente se
chamava Helena? – eu engoli.
- Ela realmente se
chamava Helena.
Ok. Isso não era uma
piada. Não era uma pegadinha. Câmeras não irão descer do teto. Um diretor não
irá dizer: corta! Mesmo que eu esperasse que um diretor dissesse.
- E porque eu – uma
lágrima desceu – eu não pude saber da verdade?
- Você precisava ficar
viva, Ana. E a única forma que conseguimos foi deixando você ficar no Brasil.
Forjando a sua morte. Não sabemos por quem o acidente foi provocado, mas
sabemos que foi provocado. Você é a sucessora. É nosso dever proteger a
sucessora. É o dever de um pai proteger a filha.
- Então acham que eu
estou morta? – eu perguntei aflita.
- A maioria. Você sabe,
um segredo só pode ser guardado por uma pessoa. Nós já envolvemos muitas nessa
história. Eu, o seu pai, sua tia, Álvaro...
- Quem é Álvaro?
- O pai de Lorenzo, rei
de Placius.
- E quem é Lorenzo? – Ai meu Deus! Lorenzo por acaso é o meu
noivo? Aquele cara que eu fiquei noiva com 7 anos?
- O seu pai precisa
explicar essa parte da história.
- Existem outras
partes?
- Uma dezena delas –
ela disse seguindo até a porta e em seguida indo embora.
Agora já se passava das
onze horas. Ninguém mais subiu. Eu estou em jejum. Eu prefiro ficar em jejum
agora. Sem estômago. Em menos de 6 horas, eu descobri que (1) a minha mãe foi
assassinada numa armadilha a qual deveria levar a minha vida, porque (2) eu sou
a primeira na lista de sucessão ao trono e (3) e eu estou noiva de um cara
chamado Lorenzo que (4) nunca vi mais gordo.
A luz do corredor
estava acessa e eu pude ver um par de pés pela fresta inferior da porta. A
porta se movimentou e lá estava ele, o rei Eduard, o meu pai.
- Me dá licença,
princesa? – ele perguntou ainda acanhado.
- Ana. Pode me chamar
de Ana – eu disse meio sem voz.
- A sua vó já conversou
com você, certo?
- Ela disse que você
precisa explicar aquela história... do... do carinha.
- Do Lorenzo?
- É. Do Lorenzo.
- Então vamos lá – ele esfregou uma mão na outra como se
estivesse pronto par a fazer uma refeição. - Lorenzo é o herdeiro do trono de
Placius. Placius e Lísia são dois reinos amigos, com uma aliança em comum: o
casamento de vocês. Foi um acordo feito entre os nossos países. Você e Lorenzo.
Juntos. A aliança se concretizou na época dos nossos tataravós, e virou uma
espécie e tradição. Uma espécie de tradição que foi quebrada por mim e por sua
mãe. Por Álvaro e Lavínia.
- Quebrada? Quem é
Lavínia?
- Bom, não houveram
herdeiros para a nossa geração. Eu nasci para governar Lísia, Álvaro para
governar Placius. Dois meninos. Não se poderia cumprir um acordo real nessas
condições. Então, casamos com pessoas desvinculadas do trono. Eu conheci sua
mãe durante um intercâmbio na Espanha. Nos apaixonamos e nos casamos.
- Uma maluquice. Com o
perdão da palavra – ele sorriu.
- Então somos a próxima
geração? Então devo casar com um cara o qual não conheço?
- Não entenda como uma
imposição. Entenda como uma oportunidade. Nós não obrigaremos vocês a nada.
- Uma oportunidade de
acabar com a minha vida?
- Ana! Não quero que me
entenda mão.
- Então quer que eu o
entenda como?
- Como um pai que sabe
que noivados foram feitos para serem rompidos. – ele disse sorrindo e eu pude
notar que o sorriso dele também parecia com o meu.
- Isso é uma promessa?
– eu peguei em suas mãos.
- Reis não fazem
promessas.
- Então o que os reis
fazem?
- Eles as cumprem.
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