terça-feira, 27 de maio de 2014

# Capítulo 3

            A janela estava aberta, a cortina movimentava-se lentamente com cada brisa que passava. Eu não tive sonhos essa noite. Apenas fechei os olhos, e depois tudo ficou escuro. Acordei antes do despertador. São exatamente cinco para seis. Antes de dormir, eu estava deitada no chão com os pés sobre a cama. Eu costumava ficar assim quando criança. Só que antes o que ficava sobre a minha barriga era um boneca de pano chamada Duda, agora o que fica sobre a minha barriga é o meu celular.
            Quando pisei no chão, a procura das minhas pantufas, pude sentir a case do meu celular e logo depois, ao pegá-lo, ver exatamente 36 chamadas perdidas do Arthur. Perdidas e não pedidas. A única coisa boa em ter feito aniversário ontem, é que hoje é feriado. Um feriado em plena terça-feira. Então eu não preciso ir para Faculdade encarar o Arthur mais uma vez. E nem repetir “estou legal” umas setecentas vezes para as meninas.
            Levanto-me em passos curtos e me encaro sobre o espelho. Não gosto do que vejo. O meu rosto está amassado e o meu cabelo parece ter acabado de sair, de um... digamos, de um furacão. Regra número um de acordar apresentável: nunca lave o seu cabelo à noite e vá para a cama. Regra número dois de acordar apresentável: certifique-se de que não verá o seu quase-namorado numa boate beijando uma garota de Comunicação Social. Regra número três de acordar apresentável: nunca quebre as duas primeiras regras.
            Após uma chuveirada, me sinto melhor. Tudo melhora depois de um banho. Prendo o meu cabelo num coque meio estou-em-casa-de-pijama-e-não-vou-sair, coloco uma blusinha surrada que tem três vezes o meu tamanho, calço as minhas pantufas do Homer, peço perdão a Deus e desço as escadas. Eu preciso tomar café. Um café amargo, para combinar com o dia.
            Enquanto eu desço as escadas eu posso ouvir vozes, eu posso ouvir o meu nome. Mas geralmente, nós não recebemos visitas. Muito menos visitas que falam o meu nome às seis da manhã. E porque diabos todo mundo resolveu acordar às seis da manhã num feriado? Um, dois, três degraus. Estou na sala. As vozes vêm da sala de jantar. Uma parece bem grave.
            - Não é só o destino de Ana. É o destino de Lorenzo também – alguém o qual a voz não consigo reconhecer.
            - Eu não sei se está na hora de... vocês... sabem... Ana saber de tudo – foi a vez de tia Janine falar.
Saber o quê?
            - Ora, Janine. Ela fez 18 anos e você sabe que isso deveria ter acontecido há muito tempo – agora foi a voz de uma mulher, rouca, fraca.
            - Ela precisa ser apresentada à Lorenzo. Afinal, eles estão noivos desde os 7 anos.
Ok. Agora eu sei que estou sonhando. Eu sei que daqui há alguns minutos o meu despertador vai tocar e eu vou assistir New Girl ou dançar. Quem é Lorenzo?
            - Mas ela não sabe de nada. Seria um choque, um tiro no escuro – tia Janine falava descontroladamente.
            - Ela terá que saber algum dia – o homem disse.
Noiva? Eu estou noiva? Certo. Isso é um sonho. Portanto, eu posso invadir aquela sala de estar e ninguém me mandará ficar quieta ou me acusará de espantar as visitas. Porque daqui a pouquinho o meu despertador vai tocar. Tudo bem caso eu invada aquela sala.
Eu pensei e agi. Dois segundos depois eu estava lá dentro, encarando tia Janine, tio Pablo (eu não havia escutado a voz dele até agora), uma senhora super bem vestida e um homem com um terno que cheirava à bom gosto (aquele da voz grave), olhando para mim. Ok. Hora de acordar. E eu não acordei. Ok. Isso não é um sonho.
            - Ana! – tia Janine correu até mim.
            - Noiva? Eu estou noiva? – foi a única coisa que consegui falar.
O homem do terno de um bilhão de dólares caminhou em minha direção. Ficou quieto, me olhando, piscando lentamente, piscando com os meus olhos. Ele tem os meus olhos. Meu Deus do céu. Ele tem os meus olhos. E não só os olhos, o queixo também. Agora a senhora bem vestida está tocando os meus cabelos como se eu fosse um ser marciano que caiu por acaso na sala de estar durante uma reunião familiar. E ela está chorando.
            - Ok. Cadê as câmeras, tia? – movimentei as minhas mãos de um lado para o outro, e depois caminhei pela sala como se procurasse uma pegadinha escondida.
            - Ana – a senhora falou – eu me chamo Pérola. E ele – agora ela apontava para o cara posudo – chama-se Eduard. Ele é meu filho... e você, bom... você é a minha neta.
Engoli em seco. Eu tenho uma avó e ela não se chama Pérola. E eu tenho um pai, ao menos eu costumava ter.
            - Acho que a senhora está enganada. Meus pais... – olhei para tia Janine pedindo a sua ajuda. Ela baixou a cabeça.
            - Ana, eu sou o seu pai e nós precisamos conversar sobre isso. Nós todos iremos explicar tudo à você. Com calma.
            - Eu acho que vou desmaiar – eu sussurrei perdendo o chão.
E foi exatamente isso o que aconteceu: eu desmaiei.


Quando acordei, estava no meu quarto. Rodeada de almofadas. E a porta estava fechada. O relógio agora marcava nove horas. Não consegui escutar o despertador. Que se dane! Hoje é terça-feira. Hoje é feriado. Eu estava tendo um sonho bem esquisito.
            Alguém bate na porta. Alguém não, a única pessoa que bate na porta antes de entrar nessa casa é tia Janine, então tia Janine bate na porta.
- Tudo bem se entrar, tia – eu disse com a almofada jogada no rosto. – Sabe, eu estava tendo um sonho muito estranho. Eu tenho tido sonhos esquisitos ultimamente. Tinha um cara, um terno de um milhão de dólares, uma velhinha que cheirava a lavanda, os olhos seus olhos duvidosos, o silêncio do tio Pablo.
Eu pude sentir que ela sentou ao meu lado. E passou as mãos nos meus cabelos, mas não falou coisa alguma. Apenas ficou ali: me olhando. O que é estranho para ela. Ok. Resolvo tirar a almofada do rosto e quem está ali não é tia Janine, nem Sofi, nem tio Pablo, é a velhinha que cheira à lavanda.
- Então eu cheiro à lavanda? – ela perguntou sorrindo.
- Tudo bem. Esse sonho pode durar mais do que normalmente sonhos duram – eu disse, cobrindo o rosto mais uma vez.
            A velinha que cheirava a lavanda e durante o sonho disse chamar-se Pérola, retirou a almofada do meu rosto e com os dedos entre os lábios me pediu silencio. Eu poderia gritar, mas algo lá no fundo, pediu que eu confiasse nela.
            - Os Bradston, reinam na Lísia desde o século XVI. Lísia é um país muito, muito, muito distante do Brasil. Tão distante que talvez você nunca tenha ouvido falar. Se você procurar na Mapa, provavelmente não encontrará. Lísia é a minha casa. A casa de seu pai. E foi a casa da sua mãe por algum tempo. É a sua casa. – ela parou por uns segundos, e nesse momento eu pude me sentir com dez anos, quando a professora do primário nos sentava em grandes tapetes e nos contava histórias – O trono passou para muitos tataravós, por dezenas de bisavós, por outros avós, e terminou em seu pai. Eduard, rei de Lísia. Sim, você é uma princesa – ela sorriu – No sentido mais literal da palavra – ela sorriu outra vez.
1) Meu pai está vivo. 2) Minha mãe está morta? 3) Ele é um rei. 4) Eu sou uma princesa?
Permaneci parada, olhando para o teto. Eu não sabia o que falar. Eu não sei se eu deveria falar.
- Se isso não for uma piada, quer dizer, isso tem tudo para ser uma piada, mas se não for... e a minha mãe? E o acidente de carro? – eu pude sentir as lágrimas se formando nos meus olhos.
- Houve o acidente. Alguém tentou matá-los. Alguém tentou matá-la. E Deus poupou a sua vida e a de seu pai, mas sua mãe... sua mãe... infelizmente não resistiu. Então, desta forma, você é a primeira na linhagem de sucessão ao trono.
A minha mãe está morta, eu sou sucessora de um trono? Eu nunca consegui concorrer a líder da turma no ensino médio e de repente a velhinha da lavanda me joga uma bomba dessas, como seu eu não fosse uma pessoa comum. Eu sou uma pessoa comum. Mas a única coisa que me veio à cabeça foi o nome dela. Foi o nome da minha mãe.
- Ela realmente se chamava Helena? – eu engoli.
- Ela realmente se chamava Helena.
Ok. Isso não era uma piada. Não era uma pegadinha. Câmeras não irão descer do teto. Um diretor não irá dizer: corta! Mesmo que eu esperasse que um diretor dissesse.
- E porque eu – uma lágrima desceu – eu não pude saber da verdade?
- Você precisava ficar viva, Ana. E a única forma que conseguimos foi deixando você ficar no Brasil. Forjando a sua morte. Não sabemos por quem o acidente foi provocado, mas sabemos que foi provocado. Você é a sucessora. É nosso dever proteger a sucessora. É o dever de um pai proteger a filha.
- Então acham que eu estou morta? – eu perguntei aflita.
- A maioria. Você sabe, um segredo só pode ser guardado por uma pessoa. Nós já envolvemos muitas nessa história. Eu, o seu pai, sua tia, Álvaro...
- Quem é Álvaro?
- O pai de Lorenzo, rei de Placius.
- E quem é Lorenzo? – Ai meu Deus! Lorenzo por acaso é o meu noivo? Aquele cara que eu fiquei noiva com 7 anos?
- O seu pai precisa explicar essa parte da história.
- Existem outras partes?
- Uma dezena delas – ela disse seguindo até a porta e em seguida indo embora.
Agora já se passava das onze horas. Ninguém mais subiu. Eu estou em jejum. Eu prefiro ficar em jejum agora. Sem estômago. Em menos de 6 horas, eu descobri que (1) a minha mãe foi assassinada numa armadilha a qual deveria levar a minha vida, porque (2) eu sou a primeira na lista de sucessão ao trono e (3) e eu estou noiva de um cara chamado Lorenzo que (4) nunca vi mais gordo.
A luz do corredor estava acessa e eu pude ver um par de pés pela fresta inferior da porta. A porta se movimentou e lá estava ele, o rei Eduard, o meu pai.
- Me dá licença, princesa? – ele perguntou ainda acanhado.
- Ana. Pode me chamar de Ana – eu disse meio sem voz.
- A sua vó já conversou com você, certo?
- Ela disse que você precisa explicar aquela história... do... do carinha.
- Do Lorenzo?
- É. Do Lorenzo.
- Então vamos lá – ele esfregou uma mão na outra como se estivesse pronto par a fazer uma refeição. - Lorenzo é o herdeiro do trono de Placius. Placius e Lísia são dois reinos amigos, com uma aliança em comum: o casamento de vocês. Foi um acordo feito entre os nossos países. Você e Lorenzo. Juntos. A aliança se concretizou na época dos nossos tataravós, e virou uma espécie e tradição. Uma espécie de tradição que foi quebrada por mim e por sua mãe. Por Álvaro e Lavínia.
- Quebrada? Quem é Lavínia?
- Bom, não houveram herdeiros para a nossa geração. Eu nasci para governar Lísia, Álvaro para governar Placius. Dois meninos. Não se poderia cumprir um acordo real nessas condições. Então, casamos com pessoas desvinculadas do trono. Eu conheci sua mãe durante um intercâmbio na Espanha. Nos apaixonamos e nos casamos.
- Uma maluquice. Com o perdão da palavra – ele sorriu.
- Então somos a próxima geração? Então devo casar com um cara o qual não conheço?
- Não entenda como uma imposição. Entenda como uma oportunidade. Nós não obrigaremos vocês a nada.
- Uma oportunidade de acabar com a minha vida?
- Ana! Não quero que me entenda mão.
- Então quer que eu o entenda como?
- Como um pai que sabe que noivados foram feitos para serem rompidos. – ele disse sorrindo e eu pude notar que o sorriso dele também parecia com o meu.
- Isso é uma promessa? – eu peguei em suas mãos.
- Reis não fazem promessas.
- Então o que os reis fazem?
- Eles as cumprem.




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