sexta-feira, 27 de junho de 2014

# Capítulo 10


Passei a madrugada inteira tentando pensar numa boa maneira de iniciar um texto, um discurso, uma apresentação. Passei a madrugada inteira achando que talvez eu tenha sido agraciada com todo azar e falta de talento do universo, porque não saiu uma única linha. Peguei no sono entre as três e quatro da manhã.
          O despertador começou a alarmar as nove em ponto. E lá estava eu lutando contra a preguiça matinal e contra os raios solares que invadiam o quarto. Tudo bem, eu não funciono pela manhã. Eu tento convencer o meu relógio biológico de que ainda não posso sancionar uma lei, mas que estou trabalhando para que isso aconteça. Ao meu lado está o papel de ontem, completamente amassado. Eu devo ter dormido por cima dele uma boa parte da noite. Nele está escrito em letras curvadas e pontiagudas “Aqui jaz a minha falta de criatividade”. E bom, eu não posso começar um discurso assim.
            Depois de um banho demorado na banheira, usando uns sais que encontrei no armário da pia, e de estar vestida com um vestido verde água, estou penteando os cabelos na frente do espelho. Os prendo em uma espécie de coque-clean-bem-engraçado que a gente costumava fazer no ensino médio porque nós achávamos casual e sexy. Como éramos inocentes. Os meus olhos estavam bem apagados, até passar um pouco de delineador. E finalmente, eu poderia descer. Hoje não fazia frio. Hoje tinha sol. Eu poderia entrar no lago.
            Quando eu cheguei a mesa, depois de descer as longas escadas e passar um certo tempo encarando a tela da mamãe, perguntando-me onde estariam todos os vídeos caseiros que Papai comentou no primeiro dia, vejo que apenas ele está ali. Sentando. Com um jornal na mão. E lembro que nós não conversamos direito desde que eu cheguei. Olga me explicou que ele está muito ocupado com toda essa anunciação do reino, cuidando da minha segurança, e de “negócios de estado”.
            Ele me viu entrar e seus olhos saltitaram, brilharam, os seus olhos ficaram felizes.
            - Ana – ele disse enquanto se levantada para me dar um abraço.
            - Majestade – eu disse em tom de brincadeira, abraçando-o de volta.
           - Eu estive ocupado demais, Ana. Desculpe se me desliguei de você esses dias – ele puxou a cadeira para que eu sentasse, agradeci com um sorriso.
            - Eu entendo. Você deve ter as suas responsabilidades... e agora, tem essa apresentação. Olga me explicou.
            - Olga sempre me salvando.
            - Nos salvando! Onde está vovó?
        Assim que a pergunta saiu da minha boca. Vovó entrou na sala acompanhada de Lorenzo. Ela segurava seu braço. E eles sorriam. Eu sorri por eles estarem sorrindo.
            - Qual é a piada? – papai perguntou rindo.
         - Óh! A curiosidade matou o gato, Eduard! – vovó disse enquanto batia no ombro de papai e Lorenzo puxava-lhe a cadeira. Antes de sentar-se ela me envolveu com um abraço.
            - Ana! – A voz de Lorenzo estava mais sonora hoje. Como se ele tivesse praticado francês há poucos minutos e as palavras ainda saíssem de sua boca.
            - Lorenzo! – eu disse sem olhar para ele.
            - E onde estarão os outros, vovó?
            - Todos tomaram o café da manhã bem cedo. Foram cavalgar. Elisa, Jorge e Laura.
Lorenzo engoliu em seco. Eu pude ver. Eu não sou cega. Sempre que Laura aparece ou o seu nome é pronunciado, Lorenzo engole em seco. Então, matematicamente eu tinha a pá, e a terra estava basicamente mexida, se eu tivesse coragem, eu poderia cavar. E eu poderia vender coragem, se ela pudesse ser vendida em frascos.
- Lorenzo, eu gostaria de ir até o lago, você poderia me acompanhar? – eu disse enquanto tomava uma torrada de morango nas mãos.
- Certamente – ele me olhou com os olhos estreitos, como um gato preste a atacar à presa.
Mas o gato da história sou eu.
- Mas ele mal comeu, Ana – vovó gostava de ver as pessoas comendo.
- Eu não estou com tanta fome, Sra. Pérola. Eu também levarei uma torrada de morango.
- Não precisam se preocupar com comida. Me certificarei de enviar um cesta de piquenique – meu pai findou a conversa e nós saímos andando, muito agradecidos. Eu bem mais.
Mas eu pude ouvir antes de fecharmos a porta, e aposto que Lorenzo também um “Acho que teremos um casamento” espalhar-se pelo ar.
Quando chegamos a sala de estar, pedi um tempo, precisava ir ao meu quarto pegar algo. Algo que eu planejava usar há muito tempo.


Quando pus os pés com a respiração ofegante novamente na sala de estar, Lorenzo estava sentado num dos sofás cor de marfim. Me encarando com o mesmo olhar de sempre. O mesmo olhar que me deixava maluca.
            - Então qual é o plano, Princesa?
            - Ora, não pense que está perdoado por ontem.
E saí sorrindo, sentindo os seus passos logo atrás de mim.
Assim que saímos do castelo e pude sentir o sol penetrar a minha pele, eu saí em disparada em direção ao lago. O que espantou um pouco os funcionários que trabalhavam no jardim. Corri como se tivesse 7 anos. Eu já estava perto do lago quando olhei para trás sorrindo e Lorenzo não tinha saído do lugar. “Você vai vir ou o quê?” – eu perguntei gritando. Ele revirou os olhos, baixou a cabeça e esfregou as mãos nas têmporas. E depois foi a vez dele sair correndo como se tivesse 7 anos.
Correndo na minha direção.
Correndo na minha direção, tropeçando numa pedra e terminando caindo exatamente sobre mim.
Nós gargalhamos por muito tempo. Nós ficamos um sobre o outro por mais tempo ainda.
            Até que ele disse uma coisa que me fez pensar por longas horas logo depois da cena chegar ao fim.
            - Eu tinha esquecido como era – ele disse puxando um fio dos meus cabelos dos meus lábios.
            E eu não precisei mais me importar com as pessoas nos olhando.
            - Esquecido como era o quê? – minha respiração estava incontrolavelmente ofegante.
            - Sorrir assim.
Então ele caiu ao meu lado. E fiquei ali parada, tentando entender o sentimento que crescia no meu coração e acabara de invadir a minha barriga em formato de borboletas. Ele também estava parado. Esperando que eu falasse alguma coisa. Esperando uma resposta. Mas eu não podia dar uma resposta para aquilo. Eu não tinha uma resposta para aquilo.
Eu só podia levantar, caminhar até o lago e não ficar vermelha depois de notar que nós havíamos chamado atenção de boa parte do castelo. E foi exatamente isso o que fiz.
Não demorou muito até ele me acompanhar. Ele havia tirado os sapatos. Eu pude ver quando ele sentou ao meu lado. Ele tinha pés tão bonitos, tão brancos, quase transparentes. Eu poderia contar a microvascularidades azuis que surgiam na sua pele, eu podia imaginar um oceano, eu até imagine peixes nadando. Ele fez o que sempre faz, começou a jogar pedrinhas no lago. As pedrinhas fizeram o que sempre fazem, quicaram, quicaram e afundaram. Eu fiz o que eu sempre faço, ficar em silêncio.
- Então, o que você queria me chamando para cá? – ele pigarreou.
Eu havia esquecido o verdadeiro objetivo dessa vinda para cá. O que um esbarrão não faz com a gente, hein!
- O que você acha? – fiquei de pé, caminhei até a margem do lago e tirei o vestido. Seria muito aventureiro dizer que estava completamente nua. Imaginem só as manchetes nos jornais. Mas não, estava de biquíni. – Vai ou fica? – eu disse virando para Lorenzo, e eu quase caí numa crise de risos. Ele estava basicamente sem ideia do que eu estava fazendo.
- O seu pai não vai gostar nada disso. – ele disse sorrindo feito bobo, ele disse com os olhos ainda serrados.
- Não é como você fosse ser enforcado.
Então eu mergulhei no lago. E ele mergulhou atrás de mim.
- Você não pode induzir as pessoas ao erro, Ana. Isso é feio – ele jogava gotículas de água no meu rosto.
Eu gosto de ser prática, então praticamente joguei o lago na cara dele. E depois afundei-lhe a cabeça. Ele retornou sem ar, eu continuava sorrindo.
- Ana! Eles podem retornar com a pena de enforcamento quando você mata um futuro rei. – ele disse tentando boiar na água.
- Eu só estava brincando. Afundar a cabeça dentro d’água faz parte. Ninguém aqui queria te matar.
- Eu não me refiro a me afogar no lago.
- E então se refere a quê?
- Ora! Me refiro a esse biquíni.
E foi a vez dele afundar a minha cabeça dentro d’água.
E nós ficamos ali. Naquela água que hoje estava morninha. Sendo regados pela luz solar. E basicamente encarando o flerte do outro. Era visível, só a gente não podia ver, que a gente se gostava de alguma forma.
Assim que uma das funcionárias – que eu soube chamar-se Rosa – apareceu na margem deixando a nossa cesta de piqueniques e toalhas, saímos do lago. Eu optei por tomar suco de laranja, e Lorenzo escolheu um pote que continha uma espécie de doce que era famoso em Lísia, eu experimente e achei muito parecido com Mousse de manga. Isso me fez lembrar como eu sinto falta do Mousse de manga da tia Janine.
Enquanto ele saboreava o doce em compota, eu pude ver entrando com botas vermelhas – as botas vermelhas de sempre – Laura. E ela estava olhando para gente. Eu só não sabia há quanto tempo. E foi mais ou menos aí que eu resolvi desenrolar a pauta que me fez chamar Lorenzo ao lago.
- Qual é a tua e a da Laura? – perguntei enquanto roubei uma colherada do doce-vulgo-mousse-manga.
Lorenzo engoliu em seco. Eu esperava que ele engolisse.
- Laura é... bom, ela é tipo... ah sei lá, Ana.
- Sei lá, Ana? É claro e evidente como a presença de Laura te deixa desconfortável. Ela aprontou alguma com você em Placius? Vocês eram inimigos? Vocês são?
- Não é bem isso.
- E o que é?
Ele olhou para mim, meio que pedindo socorro.
- Acho que isso não interessa mais, Ana.
- Me interessa.
- Te interessa?
- É, Lorenzo. Me interessa.
- Por que te interessa?
- Porque me incomoda te ver assim.
Eu esperei alguma expressão que me fizesse pensar que tudo aquilo era paranoia, mas não encontrei. 
- Ok, Ana. É ela. A Laura.
- Eu sei que ela é a Laura.
Daí eu lembrei da nossa primeira conversa. Então a minha ficha caiu. “Quem disse que eu nunca me apaixonei de verdade?”.
E foi a minha vez de engolir em seco.


Nas primeiras horas da tarde, após o almoço tentando não encarar Laura e Lorenzo, me vi pensando no que havia acontecido no jardim. Em como exclusivamente naquele dia havia nascido um sol tão quente como nos tempos de verão. Pensei no convite que fiz à Lorenzo de irmos até o lago. Pensei no nosso esbarrão, nele retirando o cabelo do meu rosto. Lembrei do sorriso, de como os seus cabelos loiros misturam-se bem com os seus cílios cor de prata. Notei que os seus olhos estavam mais cintilantes, e o meu coração mais acelerado.
Quando o relógio badalou quatro horas e Olga veio me chamar para a sala de leitura para a primeira prova do meu vestido, eu sabia que Lorenzo também estaria lá. Fazendo a primeira prova de seja lá o que ele usará no cerimonial de apresentação. Então respirei fundo e fui. Rezando para Deus me poupasse de encontra-lo. Acho que Deus provavelmente estava muito ocupado com orações mais grandiosas do que a minha mera oração de indecisão sentimental. Porque lá estava Lorenzo sobre uma plataforma em formato oval com três mulheres alfinetando as suas pernas. Coitado.
Ao adentrar a sala tentando ignorar Lorenzo, cumprimentei a estilista que segurava um longo quadro branco onde havia o – para tudo agora, meu Deus – o vestido mais pomposo e absolutamente estonteante que eu já havia posto os olhos.
            - Me diga que esse é o meu vestido, pelo amor de Cristo. – eu disse surtando, e pude ver a risada de Lorenzo. Nem a risada de Lorenzo me abateria naquela hora.
            Olga e Edite (a estilista), riram da minha reação. Os sorrisos maiores foram guardados quando elas me ouviram gritar do provador quando eu coloquei aquela coisa de Deus no meu corpo. Eu estava parecendo o céu de madrugada.
            Os sorrisos foram substituídos por queixos caídos, quando eu saí de lá. Edite tinha mãos mágicas.
           - E você ainda diz que não nasceu para ser princesa – era Lorenzo falando e saindo do segundo provador, num terno impecável. Eu quase desmaiei.


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