Passei a madrugada
inteira tentando pensar numa boa maneira de iniciar um texto, um discurso, uma
apresentação. Passei a madrugada inteira achando que talvez eu tenha sido
agraciada com todo azar e falta de talento do universo, porque não saiu uma
única linha. Peguei no sono entre as três e quatro da manhã.
O
despertador começou a alarmar as nove em ponto. E lá estava eu lutando contra a
preguiça matinal e contra os raios solares que invadiam o quarto. Tudo bem, eu
não funciono pela manhã. Eu tento convencer o meu relógio biológico de que
ainda não posso sancionar uma lei, mas que estou trabalhando para que isso
aconteça. Ao meu lado está o papel de ontem, completamente amassado. Eu devo
ter dormido por cima dele uma boa parte da noite. Nele está escrito em letras
curvadas e pontiagudas “Aqui jaz a minha falta de criatividade”. E bom, eu não
posso começar um discurso assim.
Depois
de um banho demorado na banheira, usando uns sais que encontrei no armário da
pia, e de estar vestida com um vestido verde água, estou penteando os cabelos
na frente do espelho. Os prendo em uma espécie de coque-clean-bem-engraçado que
a gente costumava fazer no ensino médio porque nós achávamos casual e sexy.
Como éramos inocentes. Os meus olhos estavam bem apagados, até passar um pouco
de delineador. E finalmente, eu poderia descer. Hoje não fazia frio. Hoje tinha
sol. Eu poderia entrar no lago.
Quando
eu cheguei a mesa, depois de descer as longas escadas e passar um certo tempo
encarando a tela da mamãe, perguntando-me onde estariam todos os vídeos
caseiros que Papai comentou no primeiro dia, vejo que apenas ele está ali.
Sentando. Com um jornal na mão. E lembro que nós não conversamos direito desde
que eu cheguei. Olga me explicou que ele está muito ocupado com toda essa anunciação
do reino, cuidando da minha segurança, e de “negócios de estado”.
Ele
me viu entrar e seus olhos saltitaram, brilharam, os seus olhos ficaram
felizes.
-
Ana – ele disse enquanto se levantada para me dar um abraço.
-
Majestade – eu disse em tom de brincadeira, abraçando-o de volta.
-
Eu estive ocupado demais, Ana. Desculpe se me desliguei de você esses dias –
ele puxou a cadeira para que eu sentasse, agradeci com um sorriso.
-
Eu entendo. Você deve ter as suas responsabilidades... e agora, tem essa
apresentação. Olga me explicou.
-
Olga sempre me salvando.
-
Nos salvando! Onde está vovó?
Assim
que a pergunta saiu da minha boca. Vovó entrou na sala acompanhada de Lorenzo.
Ela segurava seu braço. E eles sorriam. Eu sorri por eles estarem sorrindo.
-
Qual é a piada? – papai perguntou rindo.
-
Óh! A curiosidade matou o gato, Eduard! – vovó disse enquanto batia no ombro de
papai e Lorenzo puxava-lhe a cadeira. Antes de sentar-se ela me envolveu com um
abraço.
-
Ana! – A voz de Lorenzo estava mais sonora hoje. Como se ele tivesse praticado
francês há poucos minutos e as palavras ainda saíssem de sua boca.
-
Lorenzo! – eu disse sem olhar para ele.
-
E onde estarão os outros, vovó?
-
Todos tomaram o café da manhã bem cedo. Foram cavalgar. Elisa, Jorge e Laura.
Lorenzo
engoliu em seco. Eu pude ver. Eu não sou cega. Sempre que Laura aparece ou o
seu nome é pronunciado, Lorenzo engole em seco. Então, matematicamente eu tinha
a pá, e a terra estava basicamente mexida, se eu tivesse coragem, eu poderia
cavar. E eu poderia vender coragem, se ela pudesse ser vendida em frascos.
- Lorenzo, eu gostaria
de ir até o lago, você poderia me acompanhar? – eu disse enquanto tomava uma
torrada de morango nas mãos.
- Certamente – ele me
olhou com os olhos estreitos, como um gato preste a atacar à presa.
Mas
o gato da história sou eu.
- Mas ele mal comeu,
Ana – vovó gostava de ver as pessoas comendo.
- Eu não estou com
tanta fome, Sra. Pérola. Eu também levarei uma torrada de morango.
- Não precisam se preocupar
com comida. Me certificarei de enviar um cesta de piquenique – meu pai findou a
conversa e nós saímos andando, muito agradecidos. Eu bem mais.
Mas eu pude ouvir antes
de fecharmos a porta, e aposto que Lorenzo também um “Acho que teremos um casamento”
espalhar-se pelo ar.
Quando
chegamos a sala de estar, pedi um tempo, precisava ir ao meu quarto pegar algo.
Algo que eu planejava usar há muito tempo.
Quando pus os pés com a
respiração ofegante novamente na sala de estar, Lorenzo estava sentado num dos
sofás cor de marfim. Me encarando com o mesmo olhar de sempre. O mesmo olhar
que me deixava maluca.
-
Então qual é o plano, Princesa?
-
Ora, não pense que está perdoado por ontem.
E saí sorrindo, sentindo os seus passos
logo atrás de mim.
Assim que saímos do
castelo e pude sentir o sol penetrar a minha pele, eu saí em disparada em
direção ao lago. O que espantou um pouco os funcionários que trabalhavam no
jardim. Corri como se tivesse 7 anos. Eu já estava perto do lago quando olhei
para trás sorrindo e Lorenzo não tinha saído do lugar. “Você vai vir ou o quê?”
– eu perguntei gritando. Ele revirou os olhos, baixou a cabeça e esfregou as
mãos nas têmporas. E depois foi a vez dele sair correndo como se tivesse 7
anos.
Correndo
na minha direção.
Correndo
na minha direção, tropeçando numa pedra e terminando caindo exatamente sobre
mim.
Nós gargalhamos por
muito tempo. Nós ficamos um sobre o outro por mais tempo ainda.
Até
que ele disse uma coisa que me fez pensar por longas horas logo depois da cena
chegar ao fim.
-
Eu tinha esquecido como era – ele disse puxando um fio dos meus cabelos dos
meus lábios.
E eu não precisei mais me importar
com as pessoas nos olhando.
-
Esquecido como era o quê? – minha respiração estava incontrolavelmente ofegante.
-
Sorrir assim.
Então ele caiu ao meu
lado. E fiquei ali parada, tentando entender o sentimento que crescia no meu
coração e acabara de invadir a minha barriga em formato de borboletas. Ele
também estava parado. Esperando que eu falasse alguma coisa. Esperando uma
resposta. Mas eu não podia dar uma resposta para aquilo. Eu não tinha uma
resposta para aquilo.
Eu só podia levantar,
caminhar até o lago e não ficar vermelha depois de notar que nós havíamos
chamado atenção de boa parte do castelo. E foi exatamente isso o que fiz.
Não demorou muito até
ele me acompanhar. Ele havia tirado os sapatos. Eu pude ver quando ele sentou
ao meu lado. Ele tinha pés tão bonitos, tão brancos, quase transparentes. Eu
poderia contar a microvascularidades azuis que surgiam na sua pele, eu podia
imaginar um oceano, eu até imagine peixes nadando. Ele fez o que sempre faz,
começou a jogar pedrinhas no lago. As pedrinhas fizeram o que sempre fazem,
quicaram, quicaram e afundaram. Eu fiz o que eu sempre faço, ficar em silêncio.
- Então, o que você
queria me chamando para cá? – ele pigarreou.
Eu havia esquecido o
verdadeiro objetivo dessa vinda para cá. O que um esbarrão não faz com a gente,
hein!
- O que você acha? –
fiquei de pé, caminhei até a margem do lago e tirei o vestido. Seria muito
aventureiro dizer que estava completamente nua. Imaginem só as manchetes nos
jornais. Mas não, estava de biquíni. – Vai ou fica? – eu disse virando para
Lorenzo, e eu quase caí numa crise de risos. Ele estava basicamente sem ideia
do que eu estava fazendo.
- O seu pai não vai
gostar nada disso. – ele disse sorrindo feito bobo, ele disse com os olhos
ainda serrados.
- Não é como você fosse
ser enforcado.
Então eu mergulhei no
lago. E ele mergulhou atrás de mim.
- Você não pode induzir
as pessoas ao erro, Ana. Isso é feio – ele jogava gotículas de água no meu
rosto.
Eu gosto de ser
prática, então praticamente joguei o lago na cara dele. E depois afundei-lhe a
cabeça. Ele retornou sem ar, eu continuava sorrindo.
- Ana! Eles podem
retornar com a pena de enforcamento quando você mata um futuro rei. – ele disse
tentando boiar na água.
- Eu só estava brincando.
Afundar a cabeça dentro d’água faz parte. Ninguém aqui queria te matar.
- Eu não me refiro a me
afogar no lago.
- E então se refere a
quê?
- Ora! Me refiro a esse
biquíni.
E foi a vez dele
afundar a minha cabeça dentro d’água.
E nós ficamos ali.
Naquela água que hoje estava morninha. Sendo regados pela luz solar. E
basicamente encarando o flerte do outro. Era visível, só a gente não podia ver,
que a gente se gostava de alguma forma.
Assim que uma das
funcionárias – que eu soube chamar-se Rosa – apareceu na margem deixando a
nossa cesta de piqueniques e toalhas, saímos do lago. Eu optei por tomar suco
de laranja, e Lorenzo escolheu um pote que continha uma espécie de doce que era
famoso em Lísia, eu experimente e achei muito parecido com Mousse de manga.
Isso me fez lembrar como eu sinto falta do Mousse de manga da tia Janine.
Enquanto ele saboreava
o doce em compota, eu pude ver entrando com botas vermelhas – as botas
vermelhas de sempre – Laura. E ela estava olhando para gente. Eu só não sabia há
quanto tempo. E foi mais ou menos aí que eu resolvi desenrolar a pauta que me
fez chamar Lorenzo ao lago.
- Qual é a tua e a da
Laura? – perguntei enquanto roubei uma colherada do doce-vulgo-mousse-manga.
Lorenzo engoliu em
seco. Eu esperava que ele engolisse.
- Laura é... bom, ela é
tipo... ah sei lá, Ana.
- Sei lá, Ana? É claro
e evidente como a presença de Laura te deixa desconfortável. Ela aprontou
alguma com você em Placius? Vocês eram inimigos? Vocês são?
- Não é bem isso.
- E o que é?
Ele olhou para mim,
meio que pedindo socorro.
- Acho que isso não
interessa mais, Ana.
- Me interessa.
- Te interessa?
- É, Lorenzo. Me
interessa.
- Por que te interessa?
- Porque me incomoda te
ver assim.
Eu esperei alguma expressão que me fizesse pensar que tudo aquilo era paranoia, mas não encontrei.
- Ok, Ana. É ela. A
Laura.
- Eu sei que ela é a
Laura.
Daí eu lembrei da nossa
primeira conversa. Então a minha ficha caiu.
“Quem disse que eu nunca me apaixonei de verdade?”.
E foi a minha vez de
engolir em seco.
Nas primeiras horas da
tarde, após o almoço tentando não encarar Laura e Lorenzo, me vi pensando no
que havia acontecido no jardim. Em como exclusivamente naquele dia havia
nascido um sol tão quente como nos tempos de verão. Pensei no convite que fiz à
Lorenzo de irmos até o lago. Pensei no nosso esbarrão, nele retirando o cabelo
do meu rosto. Lembrei do sorriso, de como os seus cabelos loiros misturam-se
bem com os seus cílios cor de prata. Notei que os seus olhos estavam mais
cintilantes, e o meu coração mais acelerado.
Quando o relógio
badalou quatro horas e Olga veio me chamar para a sala de leitura para a
primeira prova do meu vestido, eu sabia que Lorenzo também estaria lá. Fazendo
a primeira prova de seja lá o que ele usará no cerimonial de apresentação.
Então respirei fundo e fui. Rezando para Deus me poupasse de encontra-lo. Acho
que Deus provavelmente estava muito ocupado com orações mais grandiosas do que
a minha mera oração de indecisão sentimental. Porque lá estava Lorenzo sobre
uma plataforma em formato oval com três mulheres alfinetando as suas pernas.
Coitado.
Ao adentrar a sala
tentando ignorar Lorenzo, cumprimentei a estilista que segurava um longo quadro
branco onde havia o – para tudo agora, meu Deus – o vestido mais pomposo e absolutamente
estonteante que eu já havia posto os olhos.
-
Me diga que esse é o meu vestido, pelo amor de Cristo. – eu disse surtando, e
pude ver a risada de Lorenzo. Nem a risada de Lorenzo me abateria naquela hora.
Olga
e Edite (a estilista), riram da minha reação. Os sorrisos maiores foram
guardados quando elas me ouviram gritar do provador quando eu coloquei aquela
coisa de Deus no meu corpo. Eu estava parecendo o céu de madrugada.
Os
sorrisos foram substituídos por queixos caídos, quando eu saí de lá. Edite tinha
mãos mágicas.
-
E você ainda diz que não nasceu para ser princesa – era Lorenzo falando e
saindo do segundo provador, num terno impecável. Eu quase desmaiei.
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