domingo, 1 de junho de 2014

# Capítulo 5


Eu poderia resumir a viagem com: uma longa e duradoura onda quebrada. Quando adormecia, tempos depois acordava e olhava para os lados, eu via pessoas que eram a minha família, mas que ao mesmo tempo não eram. E é um tanto confuso chegar a essa conclusão, a essa imparcialidade de parentalidade sentimental, estando em frente ao seu pai, estando em frente a sua avó. Acontece que todas as vezes, quando eu olho para eles, eu penso: eu tenho um casamento para estragar. Acontece que todas as vezes que eu olho para eles, eu penso: eu quero ir para casa. E não para por aqui, o pior de tudo é pensar: eu vou decepcionar essas pessoas.
Quando eu pude ver o avião sobrevoar um castelo, um imenso castelo, foi que, finalmente a ficha caiu. Eu havia chegado à minha casa. Eu iria pisar numa casa que foi minha há 15 anos. Num campo em que eu provavelmente devo ter aprendido a andar. Em escadas que a minha mãe deve ter descido segurando-me no colo. Num escritório no qual, enquanto mamãe me acalantava, olhava para o meu pai. Pai. É tão difícil falar esta palavra. Mãe. É tão difícil pensar nesta.
Logo depois, quando o avião pousou na pista, saí com as mãos sobre os olhos, e roupas de frio, visualizando um batalhão de pessoas uniformizadas de azul. Mulheres completamente bem vestidas, bem maquiadas e lindas. Mulheres que poderiam concorrer a qualquer Miss Universo. E homens também. Homens absolutamente perfeitos. À medida que nos aproximávamos, reverencias eram feitas, cornetas tocadas, “Vossa Majestade” escutados. Cochichos também. Pude ver o castelo e o seu esplendor, tão grande, tão bonito, tão assustadoramente irreal.
E a única coisa que pude pensar foi: alguém de Lísia tentou me matar. E é exatamente em Lísia que estou agora.
Eu tremia. Aposto que era visível. Eduard segurou a minha mão. Pérola segurou a outra. Caminhávamos por uma estrada de tijolos amarelos que me faziam lembrar o Mágico de Oz, e o que me fez perguntar se aquilo não era realmente um sonho. Paramos em frente à um homem de bigodes finos e óculos redondos. O homem tinha olhos de gato. Ao seu lado, estava um carinha da minha idade, talvez um ano mas velhos. Era o príncipe Lorenzo? Não tão escandalosamente perfeito como se espera de um príncipe. Não tão escandalosamente perfeito como a Disney nos fez esperar.
- Vossa Majestade! – disseram em uníssono. O cara de bigodes faz uma reverência espalhafatosa que me deu vontade de rir.
- Jorge! – Eduard acenou com a cabeça para o moço de bigode que agora tinha um nome, apertando em seguida a sua mão. – Edgar! – foi a vez de cumprimentar o carinha.
O carinha que não era Lorenzo.
O carinha que não era o meu noivo.

Eles nos acompanharam e subimos os degraus para entrada do castelo juntos. Para falar a verdade, naquela hora estava anoitecendo, eu não encarei as enormes portas de vidro e ouro, eu encarei um lago. Lá havia o reflexo de alguns raios de sol, e as orquídeas violetas pareciam mergulhar dentro d’água. Achei tão bonito que decidi que ali seria o primeiro lugar que iria visitar. Soube que em Lísia costuma nevar, mas o lago ainda estava cristalino, ainda não estava congelado. E eu gostei disso. Eu não estava preparada para o frio. Nunca estive. E também suspeito que o frio nunca se preparou para mim.
Uma mulher loira, de longas pernas e olhar compenetrado, veio em nossa direção. Ela vestia uma saia justa e elegante e um terno preto, que eu percebi ser um Prada. Eu pensei que ela poderia ser a minha madrasta, mas madrastas usam anéis de compromisso e ela não tinha nenhum. Então esperei que alguém me apresentasse. Ela caminhava apressadamente em nossa direção, com uma espécie de pasta de couro na mão. E com um sorriso de orelha à orelha.
- Eles já sabem que eu estou, sabe, que eu estou viva? – sussurrei para Pérola.
- Alguns. Os que o seu pai mais confia. Você será apresentada para a população em alguns dias, mas até agora... nós podemos contar nos dedos os envolvidos – ela respondeu sorrindo e tocando os meus cabelos.
Eu sorri. Sempre foi espontânea a forma como eu sorri para ela.
- Eu não sabia que uma pessoa poderia parecer tanto com a mãe – ela disse, piscando lentamente, como se fosse uma boneca de corda. – Meu nome é Olga, sou a primeira assistente de seu pai, e agora a sua primeira assistente também, então para tudo o que precisar, estarei aqui.
O meu pai sorriu. Digo, Eduard sorriu. Realmente sorrindo. Não aquele sorriso amarelo que se dá por educação, por comoção. Era a primeira vez que eu o via sorrindo daquele jeito. Eu gostava daquele sorriso.
- Obrigada, Olga. – eu disse sorrindo. É verdade que eu, você sabe, que pareço com ela? – perguntei espantada.
As pessoas costumavam falar isso para as minhas amigas. Nunca haviam falado para mim. As pessoas não conheciam a minha mãe. Eu não conhecia. Até hoje. Até agora.
- Sim. Você é igualzinha. Menos os olhos.
- Os olhos são meus – Eduard falou.
- E o sorriso – Pérola completou.
Eu gostei de ter aquele sorriso. Não o sorriso-obrigatório. O sorriso de: eu gosto de sorrir.
- Então ela não tinha olhos verdes? – eu perguntei, encarando os olhos de Eduard.
- Ela tinha olhos cor do céu. A cor de Deus, se ele tivesse uma.
Então eu entendi, naquele exato segundo, o porquê da mamãe ter apaixonado-se pelo meu pai.
Todos permaneceram calados. Eu, Pérola, Olga, Jorge, Edgar. Porque todos, naquele exato momento estavam pensando nela.
Quando subimos as escadarias, um mordomo – um mordomo, ou uma espécie de mordomo – abriu a porta. Talvez aquela porta tivesse uma 8 metros de comprimento e 6 de largura. Era tão grande, tão bonita e tão pesada, que eu não acharia estranho se aquele homem fosse pago apenas para abri-la. Agora só estávamos eu, Eduard e Pérola. Os outros dois, haviam ido jogar golfe no jardim.
Eu procurei pisar com o pé direito. Eu sempre procuro.
Como eu poderia descrever aquele castelo? O chão não era feito de ouro, nem cerâmica, nem mármore, tampouco porcelana, era um tipo de material que reluzia o seu reflexo numa dimensão inestimável e não te deixava cego. Tudo isso ao mesmo tempo. Eu não acredito que cresci me olhando naquele piso. O lustre era feito de Cristais. Ao menos, eu acho. E era tão grande, que poderia possivelmente ser do tamanho do meu quarto. Tudo era macro. Tudo era demais.
Haviam espelhos, mesas, jarros de flores, sofás e pinturas por todo lado. Mais portas e cortinas brancas pesadas. Era o antigo e o moderno, em um só ambiente. E aquelas escadas... o que eram aquelas escadas? Estavam no centro. Eram largas, mas não como aquelas escadas da época em que Pedro II governava o Brasil, eram melhores. Eu não poderia descrever. Eu não conseguiria. A escada interligava três setores. Um para esquerda, outro para direita, um ao meio. E lá estava adornando a decoração, logo no caminho da escada, logo no meio, para qualquer um que fosse subir pudesse ver, estampada num quadro: Helena. A minha mãe.
E sim. Ela realmente parecia comigo. Era igualzinha até.
Erámos tão parecidas que poderíamos facialmente ser confundidas. Nós só precisaríamos estar com os olhos fechados.
Aqui está como ela era: branca, tão branca quanto o leite. Ela não era Branca de Neve, mas poderia ser. Fácil. Os cabelos também não tinha jeito. Eram escorridos e loiros. Tão loiros que quando a luz do lustre refletia no quadro, uma luz incandescente era emitida de lá. Os seus lábios não eram carnudos, não eram finos, não eram médios. Eram de uma conotação perfeita, como se fossem modelados e projetados para o seu rosto. Como se ela tivesse nascido e só depois, os lábios houvessem sido pregados. Não eram só os cabelos, os lábios, o nariz empinado, eram os olhos. O meu pai tinha razão. Seria a cor de Deus se ele tivesse uma.
- Ela é linda – eu disse quase chorando.
- Como você – disse o meu pai.
Nós sorrimos.
- Como era a voz dela?
            Costumo observar a voz das pessoas. Elas podem falar muito mais que meras palavras.
            - Era doce, gentil. Eu nunca a ouvi levantar a voz. Para nada. Você poderá ver os vídeos caseiros depois. Você chegará a sua própria conclusão.
            - Ela não parece com a minha tia.
            - Ela não parecia com ninguém. Até você nascer. Essa é parte boa da história – ele disse sorrindo. Aquele sorriso bonito ainda conservado nos lábios.
            - Qual a parte boa da história?
            - Você ser tão... tão parecida com ela.
            - Deve ser a parte ruim. Me ver todos os dias, lembrá-la todos os dias.
            - Não. Essa é a parte boa. A parte ruim é esquecer – ele disse, enquanto aquele sorriso livre, alegre e brilhante sumia do seu rosto. Como se metade dele também tivesse morrido.
Eu o abracei. Alguém tinha que o abraçar. Nenhum xarope é melhor que um abraço.
           

Quando cheguei a meu quarto, depois de ter me instalado, ficado abismada com o tamanho do closet, com o tamanho da cama, e logo depois, ter saído de um banho, resolvi enviar um e-mail. Não queria – pelo menos hoje – fazer uma chamada de vídeo. Liguei para tia Janine e expliquei que “sim, estava tudo bem”, que “não, eu não estava passando frio” e que “claro que estava morrendo de saudades”.
O primeiro e-mail foi para Hanna.

Assunto: Cheguei!
Hannita,
Estou há poucas horas aqui. É um pouquinho frio, há boatos de que aqui neva. Ainda não está nevando. Não experimentei flocos de neve (risos). Ainda não está no inverno. Agradeceria a Deus em minhas orações. Agradeça você também J
Eu conheci a minha mãe. Ou um quadro dela. Nós nos parecemos. Eu diria que somos iguais, exceto os olhos.
Ainda não verifiquei o Twitter e Facebook. Provavelmente irei excluir. Não quero que a “notícia” se espalhe.
Você sabe, as coisas são complicadas...
Saudades.
Menos um dia.
Na contagem regressiva.
P.S: Chamada de vídeo amanhã?
Com amor,
Ana.

Assunto: Em terra alheia. Ou não.
Dora,
OOOOOOOOOOOI
Estou no meu quarto, morrendo de saudade de vocês – aqui seria bem legal uma noite de conversa. Eu tenho um closet do tamanho do meu quarto, mas trocaria por vocês <3
Espero que faça um dia de sol (milagre) e eu possa colocar um biquíni e nadar num lago por aqui.
Eu vi a mamãe. Ela é bem parecida comigo. Não a mamãe literalmente, uma imagem dela. Olha só o que o destino faz com a gente.
Talvez desative o meu Twitter e Facebook.
Notícias voam. Minha cabeça também.
Saudade.
Chamada de vídeo amanhã?

Com amor,
Ana.

Assunto: Cá estou eu.
Mari,
A viagem foi cansativa. Eu conheci um cara que – bom – achava que fosse meu noivo. MEU DEUS! Ainda não conheci o Lorenzo. O que fazer quando conhecer???
Aqui é surpreendente. Tudo é tão grande. Tão diferente.
Saudade de vocês.
De verdade. 
Talvez desative o meu Twitter e Facebook.
Antes que tudo se espalhe.
Chamada de vídeo amanhã?
            Com amor,
Ana.

Ok. Missão número 1 cumprida. Falta a número dois. Não desci pra jantar. Levaram o meu jantar na cama. Não, não estou virando nenhuma princesinha do papai, eu só realmente estava cansada. Foi uma longa viagem. Uma longa viagem.
Mas, bom, eu preciso comer novamente. Já são mais de meia noite. O que no Brasil deverá ser mais ou menos 04 da manhã. Será se acerto a cozinha? Não me custará arriscar.
Eu lembro um pouco de como cheguei aqui. Percorro um corredor iluminado e não encontro saída, retorno pegando outro corredor, que dará em uma grande janela, sem saída outra vez. Retorno. Pego outro corredor, desta vez para esquerda. Ele tem janelas de vidro por toda a sua dimensão. Avisto as escadas. Estou na escadaria à esquerda. Ali é o salão. Aposto que – bom – talvez a cozinha fique para lá.
Desço as escadarias e estou no salão. Ele está sendo completamente iluminado pela lareira. Percorro salas e mais salas. Nenhuma cozinha. Mas eu vejo uma coisa que me interessa, talvez mais do que a comida. Eu posso ver a lua, uma enorme lua pela janela, mergulhada no mesmo lago de antes. A neblina cobre as árvores, mas posso ver as estrelas. Uma, duas, dez, quatrocentos e noventa e cinco. Elas completam a lua. Como se uma não funcionasse sem a outra.
Ouço passos atrás de mim, gelo. Não ouso virar. Não ouso me mexer. Espero lá no fundo que seja um segurança do castelo, que seja Pérola, Olga, o meu pai.
- Você não deveria estar aqui, Ana – alguém disse, alguém de uma voz não tão estranha assim.
An-na. Eu conhecia essa voz. An-na. Aquele sotaque. Aquele francês que não era francês.
Então eu me viro. E percebo os meus trajes. Um pijama. As pessoas não podem me ver de pijama. Ai meu Deus.
Era ele. O cara dos olhos cinza. Na minha frente. Ok. Eu estava sonhando. Quando eu vou parar de ter sonhos loucos? Não está só estranho, está insuportável. Permaneço imóvel.
Porque merda eu estou usando um pijama? Onde eu coloquei o meu conjunto rendado da Victoria? Onde eu coloquei? Como assim ainda não fizeram um aplicativo avisando “arrume-se você irá encontrar um cara lindo”?
- Ana? – ele aumenta a voz e caminha até mim, tocando a minha mão.
TOCANDO A MINHA MÃO! OK. ISSO NÃO É UM SONHO. AI MEU DEUS!
- É... eu! – eu sussurro.
Ele sorri.
- Bom, gostei da roupa – e sorriu. Aquele sorriu sacana. Aquele sorriso que me fez sorrir. Mas eu não iria deixar barato, iria? Não.
- E quem será você? O meu estilista? As princesas tem estilista, certo? – eu disse recuperando o fôlego.
- Bom. Eu sou só... eu. Só um cara sem sono. Um cara passeando por um castelo de proporções... bem grandes, eu diria.
- E você me conhece de onde? – perguntei instigando-o
- Eu sou um dos dedos do rei.
- Óh. Talvez Eduard esteja sentindo falta deles.
Ele sorriu. As pessoas deveriam ser proibidas de sorrir daquele jeito.
- Acredito que não.
Ele retirou o seu casaco. Ele tem bom gosto. Ele me entregou. Como aquele casaco cheira bem.
- Você deve estar com frio. – ele disse me passando o casaco.
- Não. Realmente não precisa. Estou bem. Obrigada.
A sua mão continuou estendida e os seus olhos encaravam o meu. Ninguém nunca havia me encarado daquele jeito. Tudo bem. É um sonho. Entre no jogo.
- Ok.
- Você estava vendo o lago? – ele perguntou, encostando perto de mim, encostando perto do vidro.
- É. Estava. Não estou mais – ele estava perto demais, eu estava tremendo. Eu queria beijá-lo. Eu mal conheci o cara e quero beijá-lo! Eu virei uma vadia louca.
- Você quer ir ver de perto?
- Você realmente está me convidado para sair do castelo?
- Isso.
- Você realmente acha que vou aceitar?
- Eu espero que sim – ele disse ainda sorrindo.
- Ok. Espero que você não esteja flertando comigo – eu disse encarando-o, mas ele não se moveu. Nós estávamos perto demais. Nossas bocas estavam perto demais. – Se você é um dos dedos do rei, sabe que tenho um noivo. Ok. Um noivo que não conheço, mas um noivo. Droga.
O sorriu congelou em seus lábios e os seus olhos teimavam em ficar sobre os meus. E ele mexia nos seus cabelos – que cabelos!
- Claro. Você tem um noivo. Eu sei disso. Ele é um cara de sorte.
- Pare de flertar comigo!
- Porque eu não sou seu noivo?
- Então você quer um motivo maior?
- Eu esperaria.
Que garoto imbecil. Que imbecil mais lindo.
- Princesas podem dar ordens?
- Sim, princesas podem.
- Para qualquer um?
- Para qualquer um.
- Ok. Então eu ordeno que você se afaste.
- Como quiser, princesa Ana. – ele disse fazendo uma reverência.
Ele afastou-se: um, dois, três passos. E ficou me observando enquanto eu retirava o casaco e o devolvia.
- Desculpe. Eu estou um tanto... é complicado.
- É. Eu sei.
- Eu não conheço o tal de Lorenzo. Ele pode ser o cara mais chato do planeta.
- Bom, ele pode ser.
- Mesquinho e arrogante.
- Rabugento – ele completou.
- Grosso, insolente.
- Metido – ele disse.
- Idiota.
- Um grande idiota – ele disse pegando o casaco.
Agora ele estava mais perto. Os passos para trás não haviam funcionado muito bem. Nós tínhamos essa espécie de imã.
- Nós estamos perto de novo – eu disse atônita.
- O que não é ruim – ele pegou a minha mão.
- Bom, você sabe, eu não posso te beijar. Eu tenho um...
E lá estávamos nós dois. Juntos. Nos beijando. E lá estava eu tendo o melhor beijo da minha vida.
Ele agarrava a minha cintura e me beijava. Nós estávamos respirando um pelo outro. Era aquele tipo de beijo que vaga do pescoço aos lábios. Aquele tipo de beijo que te faz querer mais.
Mas eu tive que o empurrar, eu tinha que o empurrar.
- A gente não deveria fazer isso – eu disse me afastando
- É. A gente não deveria.
- Eu tenho um...

- Noivo. Eu sei. – ele completou e depois saiu, me deixando sozinha.

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