Passei a noite em
claro. Não a noite por inteiro. Dormi em algum intervalo de tempo entre as duas
e as quatro da manhã. Depois do que aconteceu no jardim, não consegui mais ver
Lorenzo. Ele não desceu para o jantar, nós não nos esbarramos pelos corredores,
pelas escadas, pelo salão, e como fiel e orgulhosa escudeira, não ousei sair do
meu quarto.
O que passava pela
minha cabeça seguia a seguinte ordem:
1) Ele
havia me beijado.
2) Eu
havia correspondido.
3) Porque
ele havia me beijado?
4) Porque
eu havia correspondido?
Até agora eu não
consegui chegar a uma conclusão, ou a qualquer coisa que me apagasse a ideia do
nosso beijo. Nosso beijo. O pronome possessivo mais bonito de todos: nosso.
Acontece que o fato
dele ter revelado como um “Tchau. Te vejo outro dia” que fora (ainda é?)
apaixonado por alguém, me deixou um tanto desequilibrada. Eu não sei bem o que
está acontecendo comigo, mas bom, desequilibrada é uma boa palavra para definir
o que estou sentindo agora.
O que eu preciso descobrir
é: por que ele resolveu me beijar se gosta de outra pessoa?
O que eu preciso
descobrir é: por que ele me contou isso?
Porque no final das
contas, eu sou a noiva dele. E é um tanto indelicado conversar sobre isso com a
sua noiva. Tudo bem eu ter falado que esse casamento ou a ideia dele é uma
enorme furada, mas precisava ser tão rude?
Eu não o conheço há
muito tempo, eu o conheço há dois dias. E eu juro por Deus que não lembro qual
foi a última vez que um cara me fez perder uma noite de sono. Isso me fez
estremecer. Eu não poderia estar cavando um buraco para o fundo do poço. Eu não
poderia estar entrando num amor platônico que pode dar em nada. Eu não poderia
estar me apaixonando por Lorenzo.
O
que eu iria descobrir mais tarde, é que, por bem ou por mal, eu poderia.
O
amor nasce de uma matemática básica: ele é um problema + eu não deveria gostar
de problemas.
É só misturar com uma colher de chá.
Ainda estava escuro. O
céu tinha uma cor estranha. E as estrelas haviam desaparecido. O sol estava longe
de aparecer. O sol ainda dormia. Assim como metade do castelo. E de uma forma
súbita, uma vontade azucrinante me atingiu o peito: eu precisava ligar para
casa. Eu precisava falar com tia Janine. No Brasil já seria por volta das 10:00
hrs. Ela certamente atenderia.
Depois de discar o
número e esperar puxadas três chamadas, consegui ouvir do outro lado da linha a
voz da minha tia. Eu consegui imaginar o cheiro do cereal de Sofi subindo pelas
escadas. Eu consegui ver tio Pablo tocando saxofone. De quantos pedaços é feita
a saudade?
- Alô! – a voz rouca,
macia de tia Janine soou. E eu quase chorei por isso.
- Tia!
- Ana! Meu Deus, Ana!
Eu já estava ficando preocupada, menina. A primeira e última ligação foi tão
rápida quanto as aulas de balé de Sofi.
Nota
mental: Sofi sempre foi expulsa das aulas de balé. Ela nunca obedecia a
professora. Se ela pedia que girasse, enquanto todas as crianças giravam, Sofi
permanecia ali olhando a professora com cara Blasé e dirigia-se para frente do
espelho, olhando a sua saia rodada. Como é bom ter três anos.
Nós
sorrimos. Eu sentia falta de sorrir com tia Janine.
- Desculpe. As coisas
aqui tem sido bastante complicadas, confusas, inebriante, insuportáveis,
difíceis... Não é fácil pular de uma história de uma hora para outra.
- Não, não é, Ana. Mas
só serão dois meses. E você vai ver... eles não vão levar a história do
casamento adiante. O seu pai disse.
- Sim. Ele disse. Isso
depende de mim. Pelo que eu entendi.
- Óh! Que ótimo. Então
está tudo resolvido.
- É. Eu acho que sim.
- Está tudo bem, Ana?
- Conheci Lorenzo.
Silêncio na linha. Ela também precisava
de tempo para isso. Ela foi a minha mãe no final das contas.
-
E ele é um rapaz legal?
-
Ele é bem convencido e chato e hipoteticamente chato. E claro, idiota. Ele é um
grande idiota. E sabe, ele tem os olhos cinza. O cabelo lindo. A gente se
esbarrou um dia desses. A gente se beijou...
Eu
sempre gostei de dar notícias assim. Tia Janine sabia disso.
- Ok. Um beijo,
Ana! Então ele não deve ser tão ruim assim. Você não está apaixonada, está? Por
que se você estiver, é melhor...
Eu
não iria deixa-la terminar a frase. Eu sabia bem como ela iria terminar “...
admitir de uma vez”. Nunquinha.
- Ora, tia!
Convenhamos. Uma pessoa como a Senhora! Não. Nunca. Não mesmo. Nunquinha. Sem
chances. Realmente chances zero.
Ela
continuou sorrindo. Enquanto um barulho enorme no outro lado da linha indicava
a chegada de Sofi. “Mas o que é isso na sua roupa, Sofi?”. Às vezes eu não
consigo conter o riso, tampouco a saudade daquelas duas.
- Ana, preciso
desligar. Sofi acabou de chegar completamente imunda de alguma coisa marrom.
Estou com medo de perguntar o que é.
-
Tudo bem, tia. Mande um abraço para todos. Se a vovó ligar, diga que está tudo
bem e que ligarei em breve. Te amo!
-
Te amo. Te cuida.
E
o vácuo se fez presente.
Logo após falar com tia
Janine, adormeci. Só que dessa vez não houve sonhos. Tudo era preto, tudo era
escuro. Um som baixo, como um tintilar, foi emitido da porta. Abri os olhos e
agora o sol já penetrava as cortinas brancas e iluminava o quarto. As batidas
na porta me lembraram de tia Janine. Tia Janine me lembra de casa. A minha casa
me lembra de saudade. É sempre assim, uma lembrança desencadeando outra.
Como não houve
resposta, Lola e Lívia adentraram o quarto, esperando me ver dormindo. Só que
eu não estava dormindo hoje. Elas ficaram um tanto vermelhas. Depois de
sorrirem e falarem alguma coisa que não entendi, Lola estendeu uma bandeja em
minha direção, e lá estava um pequeno envelope, com o selo de Lísia.
Voltei-me
para elas com um olhar que poderia indagar “o que é isso?”, elas me responderam
com um olhar neutro. Eu teria que descobrir sozinha. Segurei o envelope entre
as minhas mãos, rasguei a borda direita. Lá dentro, estava um bilhete azul que cheirava
a lavanda. Lembrou-me Pérola.
Estava escrito em letras cursivas o
seguinte:
Café
da manhã? Às nove.
Precisamos
conversar.
Com
amor,
Papai.
Olhei para um relógio
que vagava sobre a minha penteadeira. O relógio indicava 08:00 horas. Daria
tempo. Eu só precisava tomar uma ducha, procurar uma roupa quente e descer.
Agradeci Lola e Lívia com um sorriso, após recusar a ajuda sobre prepararem o
meu banho. Eu poderia fazer isso sozinha. Eu precisava. Elas saíram sorrindo
para mim, e fecharam a porta, ainda aos cochichos. Eu não sei bem por que, mas
os cochichos delas não me incomodavam, eu não conseguia ver maldade em seus
olhos. E se existe uma coisa que eu aprendi com o tempo foi identificar a
maldade nos olhos das pessoas.
Reli o bilhete mais uma
vez, depois que já estava pronta para descer. “Precisamos conversar”. É o tipo
de convite que me dá náuseas. A última vez que alguém me disse isso, eu me
tornei uma princesa.
Abri a porta do meu
quarto e deixei que os meus pés me guiassem até a sala de 70 cadeiras. Por
algum motivo eu havia gravado o caminho no dia anterior. A minha roupa estava
mais agradável hoje. Era um moletom verde clarinho e calças jeans resistentes.
Botas de camurça brancas e um cachecol verde musgo. Abri a porta da sala e vi o
meu pai, a minha avó e nada mais nada menos que Lorenzo.
- Bom dia! – eu disse
tocando os ombros da vovó e logo depois as mãos de Eduard. Não olhei para
Lorenzo.
- Bom dia, Ana! – Vovó
disse, enquanto outro mordomo que nunca tinha visto antes puxava a cadeira que
ficava do lado de Lorenzo. O que me fez pensar sobre quantas pessoas daquele
castelo eu ainda não conhecia.
- Obrigada – eu disse
sorrindo e sentando, sem olhar para ninguém.
Escolhi umas torradas
com chocolate e pães de mel. Um copo de leite e alguns morangos que pareciam
ter um gosto bastante diferente do que eu costumava sentir no Brasil. Eram mais
doces.
- Então... você
precisava conversar comigo? – encarei Eduard.
- Sim, querida.
Precisamos falar sobre a sua aparição.
- A minha aparição?
- Sim, querida – agora
era vovó – para a população de Lísia. Você precisa de um vestido e de um
discurso.
- Um discurso? Mas, eu,
vocês sabem... eu não iria gostar de falar em público.
Eu
pude ver Lorenzo sorrindo. Aquele idiota.
-
Lorenzo pode te ajudar! – Eduard falou de uma forma tão empolgada que eu não
iria conseguir dizer não.
O
sorriso trocou de lugar por uma tosse nervosa, entalo e frustração. Foi a minha
vez de sorrir.
-
Eu posso tentar – ele disse.
-
Então, Ana? – Vovó perguntou segurando uma das minhas mãos.
-
Eu posso tentar também – eu disse dando fim a história. – Que dia eu terei que
subir sei lá onde e falar pra sei lá quem?
-
No dia 14. Antes do Natal.
Eu
tenho duas semanas para parecer uma princesa, para falar em público, para Lísia
me conhecer. Duas semanas. É exatamente por isso que eu odeio todo e qualquer
“Precisamos conversar”.
Vovó nos pediu licença.
Ela disse que precisava preparar algumas coisas para a apresentação. Papai saiu
logo depois, me deixando sozinha com Lorenzo, que mexia de um lado para o outro
uma espécie de torta de maracujá. Acho que era maracujá. Ele ainda não havia me
encarado, nem eu à ele. Mas eu tinha uma boa visão periférica, e podia ver que
perifericamente ele também me olhava.
O cabelo dele naquele
dia estava – ai meu Deus – perfeito. Aquele cara poderia muito bem desbancar
qualquer autoridade de beleza eleita por qualquer tabloide eletrônico. Ele é
lindo e sabe disso.
-
Deveria ser proibido encarar tanto uma pessoa – ele disse enquanto pegava a
jarra de suco e depositava cerca de dois dedos em seu copo.
-
Como se eu estivesse te encarando. Faça-me o favor!
-
Você não me engana, Anastácia Bradston.
-
Provavelmente não.
Ele permaneceu calado.
-
O que eu vou fazer com você, hein? – ele disse enquanto adoçava o suco.
-
Você pode me deixar em paz. Seria uma boa pedida.
-
Provavelmente não.
Agora ele batucava os
dedos na mesa. Me encarando. Ele estava me encarando. E ele fica absolutamente
mais bonito assim.
- Eu estava pensando...
o porque de você ter me beijado – eu joguei.
Acho que ele
empalideceu, pigarreou, sorriu, e quase levantou-se da mesa de 70 cadeiras.
- Porque eu tive
vontade.
- Ora, ora! Então você
sai beijando todas as garotas do país com a justificativa de “eu tive vontade”.
Muito legal! Posso aplaudir se quiser.
- Ana, Ana, Ana.
Agora ele estava virado
na minha direção. Agora ele estava com a mão sobre a minha. Com os olhos sobre
os meus. E eu estava gostando daquilo. Droga!
-
Não é assim que funciona. Não é... puxa “ele tem vontade de beijar e beija”. Eu
só gostei de você. Te achei... diferente.
- Diferente?
-
Bonita, ácida, que está nem aí para coroa. Eu te achei um tanto interessante. E
tem a sua boca também.
Ai meu Deus! Eu só consegui ouvir o “E
tem a sua boca também”.
-
O que tem a minha boca, Lorenzo?
Agora eu poderia praticamente sentir
aquela barba tocar o meu queixo.
-
Seria um desperdício não beijá-la – ele disse acariciando a minha bochecha.
-
Acho que concordamos com alguma coisa.
-
Você também acha um desperdício? – ele disse engolindo em seco.
-
Eu acho um desperdício não beijar a sua.
-
Então?
Alguns milímetros separavam nossas
bocas, nossa respiração ofegante.
-
Então, segundo a minha tia, uma tia a qual você não conhece – eu estava
queimando, eu tentava falar o mais rápido possível – eu sou muito boa nisso.
-
Nisso o quê?
-
Em desperdiçar oportunidades.
Não foi Lorenzo o
primeiro a sair dessa vez. Fui eu. Que refrescada pelo seu hálito de menta,
joguei um guardanapo sobre a mesa de 70 cadeiras e saí andando pela sala,
fazendo - logo quando estava há dois passos dele - um sinal para que ele
recolocasse o seu queixo no lugar. Que naquela hora estava de uma forma
assustadoramente sexy.
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