segunda-feira, 9 de junho de 2014

# Capítulo 7

Passei a noite em claro. Não a noite por inteiro. Dormi em algum intervalo de tempo entre as duas e as quatro da manhã. Depois do que aconteceu no jardim, não consegui mais ver Lorenzo. Ele não desceu para o jantar, nós não nos esbarramos pelos corredores, pelas escadas, pelo salão, e como fiel e orgulhosa escudeira, não ousei sair do meu quarto.
O que passava pela minha cabeça seguia a seguinte ordem:
1)      Ele havia me beijado.
2)      Eu havia correspondido.
3)      Porque ele havia me beijado?
4)      Porque eu havia correspondido?
Até agora eu não consegui chegar a uma conclusão, ou a qualquer coisa que me apagasse a ideia do nosso beijo. Nosso beijo. O pronome possessivo mais bonito de todos: nosso.
Acontece que o fato dele ter revelado como um “Tchau. Te vejo outro dia” que fora (ainda é?) apaixonado por alguém, me deixou um tanto desequilibrada. Eu não sei bem o que está acontecendo comigo, mas bom, desequilibrada é uma boa palavra para definir o que estou sentindo agora.
O que eu preciso descobrir é: por que ele resolveu me beijar se gosta de outra pessoa?
O que eu preciso descobrir é: por que ele me contou isso?
Porque no final das contas, eu sou a noiva dele. E é um tanto indelicado conversar sobre isso com a sua noiva. Tudo bem eu ter falado que esse casamento ou a ideia dele é uma enorme furada, mas precisava ser tão rude?
Eu não o conheço há muito tempo, eu o conheço há dois dias. E eu juro por Deus que não lembro qual foi a última vez que um cara me fez perder uma noite de sono. Isso me fez estremecer. Eu não poderia estar cavando um buraco para o fundo do poço. Eu não poderia estar entrando num amor platônico que pode dar em nada. Eu não poderia estar me apaixonando por Lorenzo.
O que eu iria descobrir mais tarde, é que, por bem ou por mal, eu poderia.
O amor nasce de uma matemática básica: ele é um problema + eu não deveria gostar de problemas.
 É só misturar com uma colher de chá.

Ainda estava escuro. O céu tinha uma cor estranha. E as estrelas haviam desaparecido. O sol estava longe de aparecer. O sol ainda dormia. Assim como metade do castelo. E de uma forma súbita, uma vontade azucrinante me atingiu o peito: eu precisava ligar para casa. Eu precisava falar com tia Janine. No Brasil já seria por volta das 10:00 hrs. Ela certamente atenderia.
Depois de discar o número e esperar puxadas três chamadas, consegui ouvir do outro lado da linha a voz da minha tia. Eu consegui imaginar o cheiro do cereal de Sofi subindo pelas escadas. Eu consegui ver tio Pablo tocando saxofone. De quantos pedaços é feita a saudade?
- Alô! – a voz rouca, macia de tia Janine soou. E eu quase chorei por isso.
- Tia!
- Ana! Meu Deus, Ana! Eu já estava ficando preocupada, menina. A primeira e última ligação foi tão rápida quanto as aulas de balé de Sofi.
Nota mental: Sofi sempre foi expulsa das aulas de balé. Ela nunca obedecia a professora. Se ela pedia que girasse, enquanto todas as crianças giravam, Sofi permanecia ali olhando a professora com cara Blasé e dirigia-se para frente do espelho, olhando a sua saia rodada. Como é bom ter três anos.
Nós sorrimos. Eu sentia falta de sorrir com tia Janine.
- Desculpe. As coisas aqui tem sido bastante complicadas, confusas, inebriante, insuportáveis, difíceis... Não é fácil pular de uma história de uma hora para outra.
- Não, não é, Ana. Mas só serão dois meses. E você vai ver... eles não vão levar a história do casamento adiante. O seu pai disse.
- Sim. Ele disse. Isso depende de mim. Pelo que eu entendi.
- Óh! Que ótimo. Então está tudo resolvido.
- É. Eu acho que sim.
- Está tudo bem, Ana?
- Conheci Lorenzo.
Silêncio na linha. Ela também precisava de tempo para isso. Ela foi a minha mãe no final das contas.
            - E ele é um rapaz legal?
          - Ele é bem convencido e chato e hipoteticamente chato. E claro, idiota. Ele é um grande idiota. E sabe, ele tem os olhos cinza. O cabelo lindo. A gente se esbarrou um dia desses. A gente se beijou...
Eu sempre gostei de dar notícias assim. Tia Janine sabia disso.
            - Ok. Um beijo, Ana! Então ele não deve ser tão ruim assim. Você não está apaixonada, está? Por que se você estiver, é melhor...
Eu não iria deixa-la terminar a frase. Eu sabia bem como ela iria terminar “... admitir de uma vez”. Nunquinha.
- Ora, tia! Convenhamos. Uma pessoa como a Senhora! Não. Nunca. Não mesmo. Nunquinha. Sem chances. Realmente chances zero.
Ela continuou sorrindo. Enquanto um barulho enorme no outro lado da linha indicava a chegada de Sofi. “Mas o que é isso na sua roupa, Sofi?”. Às vezes eu não consigo conter o riso, tampouco a saudade daquelas duas.
            - Ana, preciso desligar. Sofi acabou de chegar completamente imunda de alguma coisa marrom. Estou com medo de perguntar o que é.
            - Tudo bem, tia. Mande um abraço para todos. Se a vovó ligar, diga que está tudo bem e que ligarei em breve. Te amo!
            - Te amo. Te cuida.
E o vácuo se fez presente.  

Logo após falar com tia Janine, adormeci. Só que dessa vez não houve sonhos. Tudo era preto, tudo era escuro. Um som baixo, como um tintilar, foi emitido da porta. Abri os olhos e agora o sol já penetrava as cortinas brancas e iluminava o quarto. As batidas na porta me lembraram de tia Janine. Tia Janine me lembra de casa. A minha casa me lembra de saudade. É sempre assim, uma lembrança desencadeando outra.
Como não houve resposta, Lola e Lívia adentraram o quarto, esperando me ver dormindo. Só que eu não estava dormindo hoje. Elas ficaram um tanto vermelhas. Depois de sorrirem e falarem alguma coisa que não entendi, Lola estendeu uma bandeja em minha direção, e lá estava um pequeno envelope, com o selo de Lísia.
            Voltei-me para elas com um olhar que poderia indagar “o que é isso?”, elas me responderam com um olhar neutro. Eu teria que descobrir sozinha. Segurei o envelope entre as minhas mãos, rasguei a borda direita. Lá dentro, estava um bilhete azul que cheirava a lavanda. Lembrou-me Pérola.
Estava escrito em letras cursivas o seguinte:
Café da manhã? Às nove.
Precisamos conversar.
Com amor,
Papai.
Olhei para um relógio que vagava sobre a minha penteadeira. O relógio indicava 08:00 horas. Daria tempo. Eu só precisava tomar uma ducha, procurar uma roupa quente e descer. Agradeci Lola e Lívia com um sorriso, após recusar a ajuda sobre prepararem o meu banho. Eu poderia fazer isso sozinha. Eu precisava. Elas saíram sorrindo para mim, e fecharam a porta, ainda aos cochichos. Eu não sei bem por que, mas os cochichos delas não me incomodavam, eu não conseguia ver maldade em seus olhos. E se existe uma coisa que eu aprendi com o tempo foi identificar a maldade nos olhos das pessoas.
Reli o bilhete mais uma vez, depois que já estava pronta para descer. “Precisamos conversar”. É o tipo de convite que me dá náuseas. A última vez que alguém me disse isso, eu me tornei uma princesa.
Abri a porta do meu quarto e deixei que os meus pés me guiassem até a sala de 70 cadeiras. Por algum motivo eu havia gravado o caminho no dia anterior. A minha roupa estava mais agradável hoje. Era um moletom verde clarinho e calças jeans resistentes. Botas de camurça brancas e um cachecol verde musgo. Abri a porta da sala e vi o meu pai, a minha avó e nada mais nada menos que Lorenzo.
- Bom dia! – eu disse tocando os ombros da vovó e logo depois as mãos de Eduard. Não olhei para Lorenzo.
- Bom dia, Ana! – Vovó disse, enquanto outro mordomo que nunca tinha visto antes puxava a cadeira que ficava do lado de Lorenzo. O que me fez pensar sobre quantas pessoas daquele castelo eu ainda não conhecia.
- Obrigada – eu disse sorrindo e sentando, sem olhar para ninguém.
Escolhi umas torradas com chocolate e pães de mel. Um copo de leite e alguns morangos que pareciam ter um gosto bastante diferente do que eu costumava sentir no Brasil. Eram mais doces.
- Então... você precisava conversar comigo? – encarei Eduard.
- Sim, querida. Precisamos falar sobre a sua aparição.  
- A minha aparição?
- Sim, querida – agora era vovó – para a população de Lísia. Você precisa de um vestido e de um discurso.
- Um discurso? Mas, eu, vocês sabem... eu não iria gostar de falar em público.
Eu pude ver Lorenzo sorrindo. Aquele idiota.
            - Lorenzo pode te ajudar! – Eduard falou de uma forma tão empolgada que eu não iria conseguir dizer não.
O sorriso trocou de lugar por uma tosse nervosa, entalo e frustração. Foi a minha vez de sorrir.
            - Eu posso tentar – ele disse.
            - Então, Ana? – Vovó perguntou segurando uma das minhas mãos.
            - Eu posso tentar também – eu disse dando fim a história. – Que dia eu terei que subir sei lá onde e falar pra sei lá quem?
            - No dia 14. Antes do Natal.
Eu tenho duas semanas para parecer uma princesa, para falar em público, para Lísia me conhecer. Duas semanas. É exatamente por isso que eu odeio todo e qualquer “Precisamos conversar”.


Vovó nos pediu licença. Ela disse que precisava preparar algumas coisas para a apresentação. Papai saiu logo depois, me deixando sozinha com Lorenzo, que mexia de um lado para o outro uma espécie de torta de maracujá. Acho que era maracujá. Ele ainda não havia me encarado, nem eu à ele. Mas eu tinha uma boa visão periférica, e podia ver que perifericamente ele também me olhava.
O cabelo dele naquele dia estava – ai meu Deus – perfeito. Aquele cara poderia muito bem desbancar qualquer autoridade de beleza eleita por qualquer tabloide eletrônico. Ele é lindo e sabe disso.
            - Deveria ser proibido encarar tanto uma pessoa – ele disse enquanto pegava a jarra de suco e depositava cerca de dois dedos em seu copo.
            - Como se eu estivesse te encarando. Faça-me o favor!
            - Você não me engana, Anastácia Bradston.
            - Provavelmente não.
Ele permaneceu calado.
            - O que eu vou fazer com você, hein? – ele disse enquanto adoçava o suco.
            - Você pode me deixar em paz. Seria uma boa pedida.
            - Provavelmente não.
Agora ele batucava os dedos na mesa. Me encarando. Ele estava me encarando. E ele fica absolutamente mais bonito assim.
- Eu estava pensando... o porque de você ter me beijado – eu joguei.
Acho que ele empalideceu, pigarreou, sorriu, e quase levantou-se da mesa de 70 cadeiras.
- Porque eu tive vontade.
- Ora, ora! Então você sai beijando todas as garotas do país com a justificativa de “eu tive vontade”. Muito legal! Posso aplaudir se quiser.
- Ana, Ana, Ana.
Agora ele estava virado na minha direção. Agora ele estava com a mão sobre a minha. Com os olhos sobre os meus. E eu estava gostando daquilo. Droga!
            - Não é assim que funciona. Não é... puxa “ele tem vontade de beijar e beija”. Eu só gostei de você. Te achei... diferente.
            - Diferente?
            - Bonita, ácida, que está nem aí para coroa. Eu te achei um tanto interessante. E tem a sua boca também.
Ai meu Deus! Eu só consegui ouvir o “E tem a sua boca também”.
            - O que tem a minha boca, Lorenzo?
Agora eu poderia praticamente sentir aquela barba tocar o meu queixo.
            - Seria um desperdício não beijá-la – ele disse acariciando a minha bochecha.
            - Acho que concordamos com alguma coisa.
            - Você também acha um desperdício? – ele disse engolindo em seco.
            - Eu acho um desperdício não beijar a sua.
            - Então?
Alguns milímetros separavam nossas bocas, nossa respiração ofegante.
            - Então, segundo a minha tia, uma tia a qual você não conhece – eu estava queimando, eu tentava falar o mais rápido possível – eu sou muito boa nisso.
            - Nisso o quê?
            - Em desperdiçar oportunidades.

Não foi Lorenzo o primeiro a sair dessa vez. Fui eu. Que refrescada pelo seu hálito de menta, joguei um guardanapo sobre a mesa de 70 cadeiras e saí andando pela sala, fazendo - logo quando estava há dois passos dele - um sinal para que ele recolocasse o seu queixo no lugar. Que naquela hora estava de uma forma assustadoramente sexy.

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